Translate

Minha vinda para Santana - Parte IV

Eu já estava aclimatado ao Frontino Guimarães e às vezes recebia em casa algum colega para brincar. Os livros escolares eram as brochuras de Carolina Renó Ribeiro de Oliveira, em que se aprendiam as matérias do curso primário, inclusive cartografia. Por vezes eram organizadas excursões educativas para os alunos, como a que fizemos ao DETRAN para conhecer o sistema de controle de trânsito da cidade, ao Parque de Aeronáutica durante a Semana da Asa de 1962 e outras que agora não me ocorrem.

Os colégios onde estudamos têm lugar perene em nossa memória, assim com os professores. Alguns eram notáveis por sua competência, outros porque eram chatos. Mas havia aqueles de quem gostávamos.  Dona Maria do Carmo Rocha, à época com 54 anos, era uma educadora nata que nos ensinou, ao lado da matéria curricular, noções básicas de bom senso e relacionamento humano, tudo de forma paciente, amistosa e posso dizer, terna. Até para dar bronca ela tinha tato. Certa vez precisou faltar, sendo substituída por uma jovem inexperiente e que não sabia se impor, o que nós, meninos, interpretamos como um sinal verde para cair na bagunça. Fizemos uma bela algazarra. No dia seguinte, depois de chamar nossa atenção com firmeza, dona Maria do Carmo exortou-nos a tomar a água com que as meninas lavavam os pés à noite – como uma espécie de poção medicinal que faria com que nos comportássemos melhor. Dessa forma, amenizando a repreensão com bom humor ela passou-nos sua mensagem. Sob sua regência aprendemos a cantar hinos, entre os quais o Hino à Bandeira, o mais belo de todos. Aquela senhora, com quem tive aulas no terceiro ano primário, é  uma das minhas recordações carinhosas da infância.

Um acontecimento fatídico em agosto de 1961 - a renúncia do presidente da república e o que ocorreu a seguir nos trouxe preocupação. Minha mãe ouvindo as notícias no rádio, preocupada com o risco que corriam sua mãe e os irmãos, que moravam bem perto do palácio do governo do Rio Grande do Sul, onde se entrincheirara o governador.

Outro evento, esse com desfecho feliz, foi a copa do mundo de 1962. O jogo do Brasil contra a Espanha foi o mais dramático. Na rua acompanhávamos as partidas por autofalantes colocados nos postes. Na esquina do colégio ouvi pela voz do locutor que a Espanha estava vencendo por um a zero e já corria o segundo tempo. Voltei depressa para casa, imaginando um prognóstico sombrio. Mas ao chegar, minha mãe, que estava passando roupas, disse que o Brasil havia empatado. Dali a pouco o jogo viraria com o gol de Amarildo completando uma grande jogada de Mané Garrincha.

Nosso pequeno quintal não era tão pequeno que nos impedisse de jogar uma módica bola de borracha. Com o que ouvíamos das transmissões esportivas (narração de Raul Tabajara e comentários de Paulo Planet Buarque, na TV Record) e com o álbum de figurinhas da Copa aprendemos os nomes dos jogadores. Foram os titulares Zito, Coutinho, Gilmar, Mauro (e não Pelé, que pensávamos ser do São Paulo) os craques da seleção que nos motivaram a torcer para o Santos Futebol Clube - que depois soubemos ser o melhor time do país.

No Parque de Aeronáutica

Em uma tarde de fins de julho de 1962 um acontecimento previsto transformaria bastante nossa rotina – nova mudança, desta vez para o Parque de Aeronáutica. Depois de anos de espera, meu pai afinal conseguira vaga em um apartamento de dois quartos e mais espaçoso. Na área externa o espaço para brincar era de amplidão inimaginável comparado ao que dispúnhamos até então. Não me lembro dos detalhes, mas quando ele chegou, nossos pertences, que não eram muitos, estavam prontos para serem transportados. À noite, já relativamente instalados, jantamos no refeitório do cassino dos oficiais. De volta ao apartamento assistimos na TV Record ao desenho Manda Chuva.

Eu contava os dias que nos restavam de férias. Eram poucos, mas poderia fazer muitas coisas, entre as quais jogar futebol no campo ou na quadra, e empinar pipa. Na manhã seguinte à mudança, descemos para o amplo gramado detrás dos prédios de apartamentos para empinar uma “raia” que eu construíra e trouxera comigo. Entusiasmado com o céu livre de postes e fios de alta tensão, dei linha para a pipa e a vi subir tão alto como nunca. Isso me deu a emoção de transpor limites, mas em seguida fiquei um pouco temeroso, pois notei que lá em cima ela reagia menos ao meu comando. Chegaria o instante em que o vento me impediria de controlá-la? Não demorou e vieram um e outro menino. Um deles mostrou-se simpático e de modo diplomático comentou sobre a altitude alcançada pelo meu artefato; nos apresentamos e antes de sair desejou-me boas-vindas. Dali a pouco comecei a enrolar a linha no carretel; a pipa veio baixando devagar, e com tranquilidade consegui trazê-la intacta para mim. Eu estava feliz e animado com aquele começo.

Na época em que morávamos provisoriamente no campo de Marte eu ganhara de minha tia Esther uma bicicleta Mercswiss, cor de vinho e aro 18. Pouco pude usá-la. Com a mudança para a rua Pedro Doll ela permaneceu no guarda volumes da casa. Passados dois anos e meio, eu crescera para o tamanho da bicicleta, mas isso não tinha importância. Agora limpa e com a corrente lubrificada era só aprender a andar com desembaraço, coisa que acabou por acontecer espontaneamente.

Em uma tardinha eu estava no gramado junto ao escorregador, quando um menino se aproximou de forma amistosa, em sua bicicleta. Após as apresentações disse estar morando ali havia alguns meses. Ao saber da minha mudança recente ele sugeriu que saíssemos para percorrer as imediações. Assenti e com nossas bicicletas seguimos pedalando pela extensão das árvores, hangares e aviões, a subir e descer obstáculos. Era bom ter o espaço livre à frente. Uma sensação quase igual à que eu experimentara aos 3 ou 4 anos de idade, em uma festa de Natal na Base Aérea de Canoas quando, a bordo de um velocípede, resolvi correr em direção à pista (alertados por alguém, meus pais vieram me buscar). De volta do percurso ainda trocamos ideias sobre o que cada um queria ser na vida e ao nos despedirmos, agradeceu pela companhia. Achei-o bastante determinado para alguém com dez anos de idade. Aquele passeio representou para mim um bom presságio.

Eu acabara de entrar em um mundo pródigo de lugares para brincar e conhecer. E que seria meu lar pelos próximos anos, com seus atributos bons e ruins, conforme eu saberia ao longo do tempo.

Encerro aqui esta etapa, narrada em ordem cronológica não muito rigorosa, que cumpri em parceria com o menino que me guia quando escrevo sobre o passado distante. Se história continuará ou não, irá depender da disposição dele.                               


        O Parque de Aeronáutica de São Paulo (hoje PAMA SP) em foto atual