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Minha vinda para Santana - Parte III

Em outubro de 1960 fiz a primeira comunhão na igreja Nossa Senhora Sallete. Após semanas de catequese estávamos finalmente prontos para a grande dia. Eu já havia confessado na véspera e cumprido a penitência, o que me tornava apto a receber o sacramento. Não queria correr riscos, pois conforme minha mãe me dissera, se comungássemos em pecado a alma poderia eventualmente pegar fogo. 

Após ter recebido a eucaristia, compenetrado e de volta ao meu lugar – tal como havíamos ensaiado - eu matutava se havia engolido a hóstia ou se ela ficara presa no céu da boca. Deixei a dúvida de lado quando a beata instrutora passou diante de nós e muito animada nos conclamou a orar: “Rezem crianças, rezem muito! Hoje é o dia mais feliz da vida de vocês”! E inspirado por sua manifestação imperativa de euforia, rezei como nunca. Encerrada a cerimônia nos conduziram a um salão nos fundos da igreja onde, com a graça divina, estava à nossa disposição uma bela merenda, que nos possibilitou sair do jejum - e do estado de fervor em que nos encontrávamos.

Os livros a que tive acesso entre 1960 e o início de 1962 me cativaram definitivamente para o mundo da leitura, mas cito especialmente os infantis de Érico Veríssimo (Gente e bichos) e Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato. Embalado, lia espontaneamente tudo que encontrava, incluindo as Seleções do Reader’s Digest, Marcelino Pão e Vinho, e Pinocchio (o original de Carlo Collodi) e mais tarde o Tesouro da Juventude, presenteado pela tia Esther. Fui feliz em contar com uma boa biblioteca municipal, que ficava bem em frente ao colégio. Em meio de uma ampla área ajardinada, a casa era de estilo arquitetônico normando, a exemplo de um castelo que lhe ficava próximo. Era para onde íamos após concluir as lições de casa, ou as fazíamos lá mesmo. Mais do que uma biblioteca, simbolizava uma figura materna dadivosa a alimentar seus filhos com suas estantes repletas de livros infanto-juvenis, desenhos e pinturas sob o olhar de pacientes monitoras, sessões de cinema (O último dos moicanos) e danças de quadrilha e brincadeiras nas festas juninas. 

                                                                A biblioteca de Santana

Por tratar dessa época específica, reproduzo a seguir um parágrafo extraído da crônica D’un film à l’autre (abril de 2024): “...meu pai nos levou para assistir à sessão matutina do desenho A bela adormecida, produzido por Walt Disney. Era um feriado de 7 de setembro, em 1960. Pegamos um ônibus que nos deixou na avenida Ipiranga, onde ficava o cinema do mesmo nome. A sessão já tinha começado quando chegamos. Enlevados pela trama, personagens, cores e trilha sonora, vivemos momentos emocionantes, especialmente meu irmão que, com medo da figura da bruxa, próximo das cenas finais tratou de se esconder no banheiro. Para que ele saísse de lá tivemos que convencê-lo de que já não havia perigo. Depois daquela manhã histórica fizemos algumas incursões esparsas ao cinema levados por nossos familiares do sul, em Porto Alegre ou em São Paulo. Era uma festa quando eles vinham nos visitar. Foi em uma dessas ocasiões que conheci a menina Marisol, uma pequena atriz e cantora espanhola cativante, através do filme “Um raio de Luz”, que assisti com minha tia Esther em 1961. 

Em uma manhã de dezembro de 1961 eu havia recém entrado em férias, quando meu pai chegou em casa dizendo para me aprontar depressa porque à tarde sairia um avião para Porto Alegre. Planejávamos viajar em algumas semanas para a casa de minha avó Julieta e era a chance de eu ir antes. Mal tive tempo para pensar – minha mãe ajeitou rapidamente as roupas na mala, deu recomendação para comprar sapatos (disse eu estava precisando) e saímos os quatro - meu pai, eu, a mala, e o soldado que lhe dera carona – em uma lambreta. Um ligeiro frenesi no trecho de descida abrupta da Voluntários da Pátria, breve parada na loja de sapatos e chegamos ao Parque de Aeronáutica. O avião era um pequeno Beechcraft C-45, versão militar do Beech 18, conhecido como “Mata-sete” e sairia em seguida ao almoço. Eu ficaria aos cuidados de uma passageira que se encarregaria de me deixar na casa da minha avó. Viagem memorável, que me deu a oportunidade de regurgitar na roupa durante a turbulenta descida para pousar na Base Aérea de Canoas. E a expressão de surpresa de minha avó, ao aparecer na janela do quarto de cima para ver quem havia tocado a campainha...



Na casa da rua Pedro Doll o espaço era pequeno, ao contrário da nossa imaginação. A escada que dava para os quartos acabava em um mezanino minúsculo em frente ao qual uma janela de peitoril amplo servia de posto de observação onde meu irmão e eu conversávamos sobre atividades fictícias imaginando sermos adultos. Brincávamos de lutar com esgrimas de plástico e empinar capucheta, uma pequena pipa sem estrutura de varetas e feita com papel de jornal. Eu até havia arranjado um carretel de linha para fazê-las alçar voo, mas meu pai houve por bem escondê-lo; deixou uma pequena extensão apenas, dizendo que aquilo era suficiente para chegar até ao Parque de Aeronáutica (!). Inconformado, procurei o local onde estava escondido o carretel e quando descobri passei a cortar segmentos suplementares de linha para emendar na que sobrara até obter o que julguei ter uma extensão razoável. Provavelmente ele se preocupava com os fios de alta tensão, perigo que achávamos não existir, uma vez que só empinávamos no quintal e a altitude atingida não passava muito da do telhado. Mais tarde eu e meu irmão aprendemos a construir pipas com armação de taquara, papel de seda e cola de farinha, nos formatos de “raia” (arraia) ou peixinho, que utilizávamos e eventualmente vendíamos. Essas empinávamos na rua e com cuidado, porque aí sim havia o risco de se prenderem nos fios de eletricidade.

Durante o carnaval, enchíamos com água bisnagas de plástico e nos postávamos junto ao muro de casa para molhar os transeuntes. Sendo aquele um rito carnavalesco costumeiro dessa data e executado pelos pequenos, nunca tivemos grandes reclamações.

É comum na infância criarmos afinidade com pessoas as quais não nos interessa saber de onde saíram. Foi o caso de uma senhora que, presumo, teria sido madrinha de formatura do meu pai na ETAv, de sua filha e duas meninas, provavelmente netas, de idade aproximada da nossa. Roseli, de pele e cabelos claros e Rosemary, morena, com idade um pouco maior. Nunca soube se eram irmãs, meio irmãs, primas ou amigas. Moravam longe, na Aclimação. Não obstante as visitas serem esparsas, nosso entrosamento era tão natural que tão logo nos víamos saíamos a conversar e brincar animadamente como velhos amigos... e assim continuávamos o dia inteiro. Era uma interação rara - dada pouca frequência dos nossos encontros e por ser preciosa. Um dia minha mãe nos disse que elas haviam se mudado para outra cidade. Nunca mais as vimos. Junto ao bem-querer, ficou para mim a ideia do encanto feminino que na duas brotava ao despertarem para adolescência. Como teriam passado suas vidas e como estariam hoje?

Desde cedo, também por conta de nossos seguidos deslocamentos, compreendemos o grande valor da camaradagem. O contato inicial com famílias Cordeiro e Montenegro, oriundas do Rio de Janeiro, se deu quando éramos quase recém-chegados. Imagino que a empatia gerada pela identidade de princípios e ideais tenha sido o alicerce com o qual nossas famílias construíram uma amizade que dura até hoje.

Por vezes me acorrem à memória as reproduções de artrópodes que em 1960 meu pai fazia aos sábados de manhã quando estudava Biologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP à noite. Com paciência desenhava em papel manteiga, à lápis, os escorpiões que arranjava não sei onde. Não imaginava que as pinças que ele usava naquela atividade e os livros ‘Atlas de Histologia’ (Di Fiore) e ‘Bacteriologia e Imunologia’ (Otto Bier) viriam a ser úteis para meus estudos mais tarde... 

Devido à distância da cidade universitária e à dificuldade de transporte, meu pai teve que abrir mão do curso de Biologia. Foi então aprender Matemática Comercial e Financeira e passou a lecionar à noite no Colégio Dr. Bernardino de Campos, na Casa Verde. Daquele tempo ficaram na lembrança as provas dos alunos que ele empilhava na mesa da copa para corrigir em certas tardes de domingo. Mas, afora isso, nossos programas de domingo eram basicamente de dois tipos. De manhã, enquanto minha mãe preparava o almoço, meu pai assistia aos Concertos Matinais Mercedes Benz na TV Cultura, enquanto meu irmão e eu nos dedicávamos a destacar e colar figurinhas em álbuns sobre história, folclore e fauna brasileiras que ele nos trazia por considerá-las mais instrutivas que as vendidas nas bancas. Terminado o almoço, tirar a mesa, varrer o chão e secar a louça era atribuições dos filhos. Às 14h todos víamos as atrações do Circo do Arrelia, na TV Record. Mais tarde, às 20h na Tupi, a esperada série Papai sabe tudo (https://www.youtube.com/watch?v=mKeBsmfHx_s) com Robert Young e Jane Wyatt. 

Noutras vezes, após o almoço íamos à casa de nossos avós paternos da Bahia - vô Heitor e vó Leonídia, a quem conhecêramos em São Paulo. Meu irmão e eu não nos sentíamos exatamente satisfeitos por carregar as sacolas com mantimentos. Era um trajeto de ônibus até o subúrbio do Imirim e mais 20 minutos de caminhada até sua casa. No princípio inexistia asfalto, pois o bairro apenas começava a se urbanizar. Em nossa primeira viagem, ao ouvir minha mãe reclamar, meu pai vaticinou “Meu bem, daqui a 50 dias isso aqui estará uma beleza!” Acho que ele só queria acalmá-la - o asfalto acabou vindo, mas tardiamente à sua previsão. A casa, construída pelas mãos do meu avô, era bem simples; integrava um complexo que incluía nos fundos a habitação em que moravam tio Onídio, tia Dozinda e suas numerosas filhas, e uma outra menor, em obras. Entrava-se na a sala e na sequência vinha um corredor, que dava para três quartos de dormir, cozinha, e do lado de fora um tanque de lavar roupas, o banheiro e um poço. Cortinas de tiras longas, multicores, faziam as vezes das portas dos quartos.

Usualmente precisávamos sair de lá de banho tomado. A razão é que em companhia de dois primos de idades próximas às nossas, nos aventurávamos pelo relevo um tanto acidentado das redondezas, havendo grande probabilidade de regressarmos paramentados de barro dos pés à cabeça. No final dessas tardes era servido um lanche constituído de algum quitute artesanal básico, bolo e naturalmente Ki Suco - refeição precedida de uma breve oração do meu avô, que agradecia formalmente a Deus pela dádiva. Era um ensejo para nos reunirmos à mesa com diferentes primos, primas, tios e tias, entre as quais nossa tia Maria, irmã mais jovem do meu pai, a quem nos afeiçoamos bastante. Tia Maria trabalhava nas lojas Clipper e costumava trazer guloseimas ou brinquedinhos nas vezes em que vinha em casa - a exemplo do meu a avô, que se notabilizou por trazer doce de gergelim a granel, que vinha embrulhado em celofane e papel de padaria.  Ao receber um abraço e um cheiro ele agradecia com um humilde “obrigado” e então abria seu caderno em que transcrevia salmos, que lia e interpretava para nós. Aquele senhor afável, de barba branca e olhos azuis, que trabalhara na lavoura no interior da Bahia, otimista, agora procurava ganhar alguma quantia vendendo biju e geleia real em suas andanças.

Daquele período, guardo no meu acervo afetivo musical uma melodia instrumental (https://www.youtube.com/watch?v=ryrEPzsx1gQ) composta pelo engenheiro de som Joe Meek e lançada em 1962 por The Tornados. Meek teve uma vida conturbada e efêmera, mas sua música não. Se alguma melodia tinha a capacidade de evocar entusiasmo e crença em um futuro promissor, era Telstar. Emoção de cunho um pouco diverso eu tinha ao ouvir valsa Criança Feliz, cantada por Francisco Alves e o coro das crianças da Casa de Lázaro (https://youtu.be/fjvdbAvN8m8?si=U8eKhY6JD2UwSphm), em cuja abertura a locutora Lucia Helena declamava assim: “Brincando marcha o menino de hoje, lutando marchará o menino de amanhã. Crianças despreocupadas desse Brasil-Menino cujas glórias hão de colher os homens grandes que dominarão o Brasil-Gigante; esse Brasil grandioso que eu canto, que as crianças da Casa de Lázaro, felizes, cantarão numa esperança de vitórias e de alegrias”. E “A noite do meu bem”, canção criada e gravada por Dolores Duran em 1959 – de melodia sublime e versos que em seu epílogo denotavam uma promessa romântica não plenamente cumprida (https://www.youtube.com/watch?v=DO0rifW5lAA).