- Elena, venha limpar isso aqui!
A partir
do banheiro, gotas de sangue salpicavam o soalho de tábuas do corredor, passando
ao largo dos aposentos até a porta de entrada; depois, em percurso irregular,
desciam escada abaixo até se perderem na rua.
Era manhã
de segunda feira quando nos avisaram: o "Tier" tentara se matar!
Movido
pelo medo ou por um assomo de lucidez, ele correra até o vizinho, que em tempo
conseguira estancar o sangue que lhe escorria dos pulsos.
Comecei
a percorrer mentalmente aquele rastro, enquanto procurava entender o que o
fizera tomar tal atitude. A tentativa de suicídio não poderia ser encarada como
total surpresa, considerando-se a sua maneira de ser e o contexto em que vivia.
Há meses já não frequentava as aulas e raramente o víamos, pois só aparecia
para namorar a adolescente que habitava a moradia dos fundos, a quem
carinhosamente chamava de “meu nenê”. Adquirira uma vida nômade, circulando
entre Campinas e Jundiaí para retornar nos finais de semana, quando normalmente
não havia ninguém em casa. E por essa época, aqui e ali se ouviam comentários
sobre certas mudanças em seu comportamento.
À
parte do fato de apresentar alguns vestígios de loucura – adereço que em maior
ou menor grau compõe a personalidade das figuras humanas mais interessantes, o bicho
era muito solidário. Principalmente quando cuidava de bêbados, o que fazia com
a dedicação de mãe que trata de um filho doente. Raro perfil aquele, em que se
confundiam bons sentimentos, inconstância e um complexo de superioridade que
ele próprio reconhecia. Pude atestá-lo quando o ouvi proferir uma frase diante
do espelho depois de ficar entretido por alguns minutos a espremer cravos:
"Bicho, tu és bonito pra caralho!" *
Orlando
era seu nome. De tez clara, marcada por cicatrizes de acne, seus traços quando
observados à meia distância assemelhavam-se aos de um malfeitor comum, desses
de revistas de histórias em quadrinhos. Suavizavam-nos os olhos claros e a
expressão de cumplicidade que por vezes aparentava ao conversar.
Vem-me
à lembrança o diálogo que tivera com ele alguns meses antes, quando os jornais
relataram a visita que a famosa atriz francesa Jaqueline Bisset fazia ao nosso
país. Jovem e bonita sabe-se lá por que
motivo viera parar no Brasil e muito menos em Jundiaí, terra natal do Bicho.
-
“Orlando, você sabia que a Jaqueline Bisset esteve em Jundiaí neste final de
semana?”
-
“Claro, você acha que eu ia perder esta oportunidade? Nós até conversamos...”
- É? - disse eu desconfiado – “e como foi a
abordagem?"
-
Eu falei: “sabe, Jaqueline, os seus olhos são
lindos!"
-
“Legal, e o que ela respondeu?”
-
“Os seus também, Bichô!”
Difícil
admitir que alguém com a sua autoestima tentasse contra a própria vida. Sendo
alegre, a ideia de morte não combinava com ele. Se bem que às vezes deixasse
transparecer um esboço de amargura – talvez por carregar mágoas anteriores ou
pelo descrédito com que era tratado por certos colegas ao perceberem sua
conduta na escola. Não me esqueço do seu olhar quando certa noite, após o
jantar, negaram-lhe o direito ao fumo, numa alusão velada ao fato de que ele
vivia filando e nunca comprava cigarros.
Discretamente, fui até o meu quarto e achando no bolso do avental um
maço ainda com dois exemplares, peguei um e ofereci a ele.
"Falou,
Bicho" respondeu com um sorriso de gratidão. Porém, seu semblante era
triste, como o de quem acabasse de ter o orgulho ferido.
A
passagem que se seguiria algum tempo depois, representa para mim um retrato
singelo do seu caráter. Num daqueles fins de semana em que não me restava no
bolso senão o suficiente para pagar o ônibus que me levaria pra casa, recorri a
ele, que então respondeu:
- Bichô,
em cima do guarda-roupas do meu quarto há uma mala com um pacote de cigarros;
pegue um maço pra você.
-
“Mas eu só quero um," disse eu enquanto olhava para o Continental sem
filtro que ele acabava de acender.
-
Pode ficar com o maço. E quando precisar de mais, você não precisa me
pedir...
Inteligente
e aparentando vivência incomum para seus dezenove anos, era também hábil
conversador. Sempre identificava pontos de interesse comum com o interlocutor,
emitindo suas opiniões, em geral nada ortodoxas. Por outro lado, escutá-lo, às
vezes requeria paciência. Não era fácil fingir acreditar nas histórias que
contava – algumas beiravam mesmo o absurdo. Vejam que mal começara o curso e já
nos esperava uma tal prova de Bioquímica.
Na véspera, reunidos em torno da mesa da cozinha, procurávamos adivinhar
quais as perguntas que faria o professor Aldo Fochesi, figura severa e
enigmática que chefiava o departamento. A aridez do assunto e o fato de ser a
primeira vez que passaríamos por uma avaliação, traziam uma expectativa não
muito otimista. Então, o Bicho, que ciscava por ali, interrompeu a discussão
dando a saber com detalhes quais seriam as questões da prova.
- Quem lhe disse isso, Orlando?
-
O "Ardo" - respondeu ele tranquilamente,
referindo-se ao citado professor.
-
Como, o “Ardo?”
-
É que eu "tava" tomando "umas Brahma" com ele no Ponto Chic
e ele me passou as dicas.
Mesmo
sendo possuidor de uma certa leitura, sua linguagem deixava um pouco a desejar
- provável influência da origem
ítalo-caipira. Jóias do tipo “Dá um cigarro pá mim” eram pronunciadas com frequência.
Uma vez o “Diabão” o interpelou:
-
Ô Orlando, porque você não fala direito? Ao que
ele, sem se alterar, respondeu:
-
Ah, é porque eu tenho “piguiça.”
Foi
a única pessoa de quem eu ouvi referência informal sobre a gradação do estado
de alcoolismo.
“Frechinha,
anum e pintassirgo” dizia ele. Se fulano estava “frecha”, queria dizer
ligeiramente “alto”. “Anum” seria um estágio intermediário e “pintassirgo,” se
não me engano, era o grau mais elevado de embriaguez. Outra observação interessante
versava sobre os suportes metálicos para guardanapos de papel, comuns em mesas
de bar. Quando o sujeito está bêbado - dizia ele fazendo uma demonstração
prática - ou pega todos os guardanapos de uma vez ou não consegue pegar nenhum.
O
que gostava mesmo era de juntar gente pra beber e conversar - nisso ele se
realizava. Uma vez, ao chegar em casa um pouco mais cedo pra verificar os
preparativos da festa junina que havíamos programado para aquela noite,
encontrei-o a armar as bandeirolas de papel. Apesar de ele ter ficado o dia
inteiro por conta da organização, ainda havia o que fazer, por isso resolvi
dar-lhe uma ajuda. Ao término do trabalho, descemos a rua até o boteco próximo
pra comprar mais um pouco de bebida. Pediu duas doses de conhaque e o que nos
serviram no balcão, naturalmente era da pior qualidade. Sem se importar com
isso – havia em seu rosto um brilho de satisfação naquele momento - ele ergueu
um brinde a si mesmo e exclamou orgulhoso:
-
Mais uma realização Orlando (sobrenome)!
Conversamos
pela última vez em Dezembro daquele ano, decorridas algumas semanas da sua
tentativa de suicídio. Foi no saguão da Estação Rodoviária Júlio Prestes,
quando adquiria passagem de ônibus para sua cidade. Sua aparência envelhecida
denotava um indisfarçado desânimo, como se revelasse a necessidade de apoio
psicológico. “Vou dar um tempo pra depois ver o que eu quero fazer” disse ele
tentando parecer otimista. Lembrei-me que mais de uma vez ele havia me falado
sobre a aspiração de um dia ser torneiro mecânico ou quem sabe arquiteto, muito
embora ainda reconhecesse o fascínio que uma virtual carreira na Marinha lhe
provocava. Ele, que havia abandonado a Escola Preparatória de Cadetes do Ar lá
em Barbacena, por não ter se adaptado à vida militar...
Anos
mais tarde, avistamos alguém com as suas feições, saindo do Curso Objetivo.
Embora fosse noite, tive a impressão nítida que era ele. Fichário e apostilas
debaixo do braço, pareceu ter nos visto, mas passou distante, sem cumprimentar.
Chamei-o, inutilmente. Não nos teria reconhecido? Não sei...