Em princípios de 1959 nossa família chegou a São Paulo vinda de Curitiba, após 16 horas de uma viagem de trem com sucessivas trocas programadas de locomotiva – no início a vapor, depois a diesel e por fim, elétrica. Era de manhã bem cedo quando desembarcamos na Estação da Luz que, juntamente com a praça, foram os primeiros cenários que vi. Rumamos direto para o apartamento de um irmão do meu pai, que nos daria hospedagem até acharmos uma acomodação estável. O tio Adolfo morava com a família em um subúrbio da zona norte chamado Chora Menino, um nome que de cara achei estranho. No trajeto pela avenida Tiradentes passamos por edifícios de aspecto banal e avistamos as torres altas da ponte das Bandeiras. Nada que fosse bonito ou revelasse hospitalidade.
O apartamento era pequeno, mas nos
acomodaram da melhor maneira possível. Havia uma expectativa animada no ar e
todos conversavam bastante. À noite dormimos no chão, para variar, em cobertas
improvisadas na sala. Tocava no rádio, a música Cachito mio, que ficaria
ecoando em meus ouvidos pelos dias seguintes, quando saímos para nos alojar no
hotel de trânsito da Aeronáutica até meu pai encontrar uma casa de aluguel, o
que não demorou.
No Tucuruvi
A casa se situava à Rua Paulo Maldi,
no bairro do Tucuruvi, zona norte. Era de esquina e bem modesta;
atrás do muro baixo um quintal de cimento, um canteirinho de flores e a porta
de entrada, que com uma janela de abrir compunha a fachada. Na rua contígua, em
declive, uma passagem dava acesso aos moradores de outra casa, situada em um
plano inferior. Nossa refeição inaugural ali foi um jantar improvisado, bem
como era a mobília de caixotes de mudança, em que viera, entre algumas coisas, uma
geladeira usada da marca Norge.
Além do desalento de estar
geograficamente mais afastado dos familiares do Sul, o que eu enxergava era
pouco atrativo. A primeira imagem a me despertar algum interesse foram as luzes
dos arranha-céus do centro da cidade, que meu pai nos mostrou certa noite.
Antigamente o centro de São Paulo era visível para quem estivesse em alguns
pontos elevados da zona norte e o Tucuruvi era um deles.
À medida que me acostumava ao
novo habitat, comecei a pesquisar programas radiofônicos e nessa tarefa achei
“Bandas de todas as bandas”. Às 7h30 da manhã eu ia ao quarto dos meus pais
onde ficava o rádio de válvula e estojo de madeira para ouvir, empolgado, as
altissonantes e belas marchas. Depois, por ondas médias, foi a vez dos
dramáticos acordes iniciais da abertura do Concerto para Piano em Si bemol
menor do Tchaikovsky, vinheta da novela que minha mãe acompanhava ao passar
roupas.
De posse de um material escolar de
segunda mão - mochila, caderno, lápis, borracha e régua que haviam sido doados
pelos filhos dos padrinhos portugueses do meu irmão, e também da Cartilha Sodré, eu
estava pronto para iniciar meus estudos. O Educandário Santo Antônio era uma
escola pública situada na Avenida Nova Cantareira. Em sua fachada, no alto, uma placa
informava: “...este estabelecimento de ensino é destinado a pessoas sem
recursos financeiros...”. Porém, todos estudavam lá, independentemente de
classe social, cor ou credo, até o menino que morava em uma bela residência
(para mim, um palacete) na nossa rua. Eram aproximadamente quatro quarteirões
que eu caminhava sozinho até lá, pois minha mãe tinha que cuidar de meus irmãos
menores. Uma vez na avenida eu seguia atravessando com cuidado as transversais até chegar ao meu destino. O trânsito de veículos não era excessivo,
tendo ficado na lembrança o Chevrolet 1945 de cor preta, comumente utilizado
como taxi, e nas esquinas dois ou três casarões que me causavam curiosidade. Antes de tocar o sinal para a entrada jogávamos
“bafo’ debaixo de uma escada que dava acesso à marquise. Ao término das aulas,
o alvoroço da saída e na calçada os vendedores de cocada, rapadura e puxa-puxa
compunham o cenário daquelas tardes luminosas.
Eu tinha seis anos. Meu círculo próximo era representado por entidades definidas – a rua de paralelepípedos, a casa simples em que morávamos, a escola ainda mais simples, e o mercado municipal onde, em missões designadas por minha mãe, eu ia comprar mantimentos, entre os quais óleo de cozinha a granel – eu levava uma garrafa de vidro vazia (do tamanho das de pinga) que o merceeiro enchia a partir de um reservatório e depois tampava com rolha, tudo o prático e provavelmente higiênico.
Recapitulando agora tais incumbências, vejo-me certo dia a meio caminho do mercado, quando dou por falta do dinheiro que levava. Neste ponto as cenas são nítidas – eu revirava os bolsos e nada...após o sobressalto inicial veio o temor de voltar para casa de mãos abanando. Comecei a rezar, mas a princípio não funcionou – possivelmente o destinatário que invoquei era genérico. Se cheguei a me ajoelhar, não me lembro; o fato é uma senhora se aproximou para saber o que estava acontecendo. Quando ela se foi, concentrei-me e avistei em pensamento minha mãe a aconselhar sobre qual procedimento adotar em situações afins - acender uma vela para o ‘Negrinho Pastoreio’. Não tendo nenhuma vela para acender, apelei para ele em oração. Em seguida fiz o caminho inverso ao que percorrera até ali. E próximo de onde eu havia parado, lá estavam no chão, dobradas, as notas de cruzeiros. Agradecido e com a alma tranquila retomei meu percurso, com a convicção de que, se futuramente me achasse em apuro semelhante, recorreria à personagem salvadora do ‘Negrinho do Pastoreio’.
Dona Martha, a professora do primeiro
ano, era uma figura neutra, sem traços marcantes, salvo pela ocasião
em que me tomou um apito com o qual eu anunciara o início do horário do
recreio. Eu havia feito o anúncio de forma eloquente e absolutamente
espontânea, mas ela não quis saber. Nunca mais vi o apito, apesar de eu lhe ter
mostrado um bilhete escrito por minha mãe solicitando-o de volta. Levou-o
embora e acredito que tenha se divertido bastante com ele. Concluí que ela não
tinha espírito esportivo. Esta deve ter sido a experiência inicial a revelar
meu inconformismo diante das injustiças do mundo.
No educandário recebi das aulas de
catecismo uma versão elementar sobre a origem do universo. Entendi quando me
disseram que Deus o criou em seis dias e dedicou o sétimo a um merecido
descanso. Não gostei da representação ilustrada da serpente enrolada nos galhos
de uma macieira a tentar a companheira de Adão. Entendi perfeitamente, embora
apreensivo, o teor da maldição dirigida ao casal por Eva ter provado a maçã: “a
partir de agora ganharás o pão com o suor do teu rosto” - um prognóstico ao
qual estou sujeito até os dias de hoje. Mas não entendia como a primeira mulher
teria sido criada a partir da costela do Adão ou porque Deus teria dito:
“crescei e multiplicai-vos”. Claro que então eu ignorava o processo pelo qual
os seres procriavam, mas quando vim a saber entendi menos ainda – quer dizer
que os filhos de Adão e Eva transariam entre si com vistas a constituir uma prole?
E Caim, de onde teria surgido? Tais eventos, incluindo a tentação de Eva e o
torpe assassinato de Abel teriam sido resultantes do livre arbítrio? Teriam
ocorrido por acaso ou por um motivo? Na minha interpretação as histórias que
nos contavam não seriam mais do que dogmas que atestavam a existência atemporal
da maldade humana. Concluí que era melhor não pensar demais no assunto, pois era
coisa para Deus resolver, dado que tinha sido Ele o criador do mundo. E eu já
tinha outros propósitos importantes, entre eles aprender a ler e escrever, amarrar cordão
de sapato, tomar banho sozinho, e melhorar algumas técnicas, como jogar bolinha
de gude em chão de terra batida. E rezar orações, naturalmente, o que minha mãe
pacientemente nos ensinou.
Havia no quarteirão vizinho ao que eu
morava um terreno baldio, onde às vezes se jogava bola e que era em algumas
partes recoberto por mato. Um dia, perambulando por ali, deparei-me com um gato.
Parecia imóvel – e logo constatei que estava morto. Tomado por curiosidade
infantil voltei para pegar uma faca, que juntei a uma espécie de espeto de
madeira que encontrei nas proximidades. Munido destes instrumentos, iniciei
minha primeira atividade de dissecção, que acredito teria sido promissora caso
minha mãe não tivesse me chamado para cumprir alguma tarefa doméstica ou
escolar. Quando no dia seguinte, com a curiosidade aguçada voltei a campo, não
pude continuar - o odor que ali pairava impediu que eu prosseguisse com minha
empreitada científica.
Em outubro de 1959 nos mudamos
provisoriamente para o Campo de Marte, junto ao Aeroclube. A moradia era
melhor, mas a distância impedia que eu fosse à escola por meus próprios meios.
Meu pai então providenciou o transporte – em geral um caminhão coberto por um
toldo e, às vezes, um Jeep militar.
As datas e imagens que me acorrem são nebulosas, mas uma espécie de confraternização de encerramento das aulas ocorreria na classe em dezembro, ocasião em que cada aluno devia trazer um prato de comida. Havia muita animação na sala ante a iminência de comer coisas gostosas e que continuou à medida que as degustávamos. O convescote já ia pelas tantas quando um bolo chamado “floresta negra” - segundo os comentários admirados – apareceu na sala trazido por uma colega e a respectiva mãe. Bastante elogiado por dona Martha, se distinguia claramente das marias moles, bons bocados, bolos de fubá e iguarias frugais que ainda restavam na mesa. Eu jamais vira um bolo requintado como aquele. Pena que sua chegada triunfal foi tardia, porque ocorreu no momento em que a turma já estava de barriga cheia. Não me lembro se alguém chegou a prová-lo ou - hipótese mais plausível - teria se prestado só para exibição.
O que aconteceu com o Educandário Santo Antônio?
O Educandário Santo Antônio, onde cursei a primeira série do primário, era mantido pela extinta Fundação Imperatriz Dona Maria Leopoldina em parceria com a LBA e existia desde os anos 40, conforme me inteirei ao pesquisar sobre suas origens. Um dia, acho que em fins década de 1960, ao passar pelo local vi que o imóvel não estava mais lá e sim um posto de gasolina. Fiquei decepcionado, mas não procurei na ocasião saber em que circunstâncias a escola desaparecera. Como escreveu o psiquiatra inglês Anthony Daniels (codinome Theodore Dalrymple), por ser jovem eu ainda não achava o passado mais interessante que o futuro e acreditava que o presente nunca se transformaria em passado. O preço pelo atraso em investigar é que hoje, das diretorias regionais de ensino não é possível obter nenhuma informação - um triste descaso do estado com a memória das pequenas escolas.* O que é bom não deveria mudar, talvez apenas passar por adaptações no decorrer do tempo. Como qualquer trabalho que nos passa a ideia de confiabilidade, se preservado e cuidado com carinho, sobrevive ao tempo. Mas será certamente destruído e esquecido se tratado com desleixo
A escola não possuía equipamentos ou enfeites e o pátio interno devia ser bem pequeno, se é que havia um. Mas foi lá que eu e meus colegas - cuja fisionomia eu reconheço - aprendemos a ler e escrever pela mão de uma professora empenhada em sua nobre função. Como testemunho material restou-me apenas a foto dos alunos da classe junto com dona Martha.
De novo no hotel de trânsito
Em março de 1960 nos mudamos novamente para o hotel de trânsito da Aeronáutica à espera que meu pai conseguisse uma casa de aluguel, o que aconteceria dali a um ou dois meses. Foi um tempo difícil – não era possível brincar e conversar com uma irmã que acabara de sair da fase de lactente e meu irmão estava morando temporariamente na casa da minha avó, em Porto Alegre. Além disso, as sucessivas alternâncias de moradia - três diferentes em um período de apenas 4 meses - eram um obstáculo à minha adaptação. Entrei para o segundo ano primário no antigo Grupo Escolar Buenos Aires algumas semanas depois de iniciado o ano letivo. Do portão da rua Lusitana eram cinco quadras que sob o sol da tarde eu tinha que vencer até chegar ao prédio da escola, na avenida Cruzeiro do Sul – uma construção antiga, com interior de pé direito alto, colunas gregas (jônicas?) e largas escadarias.
Fui bem recebido pela professora, que
me apresentou formalmente à classe. Porém, percebi que todos já se conheciam.
Sendo assim, aliado ao fato de estar defasado nas matérias, eu era um
forasteiro. A maior parte do horário de recreio eu permanecia só, com meus botões,
circunstância propícia para que eu me iniciasse na prática de meditação
transcendental. Outras experiências proveitosas nesse período foram a
aprendizagem da escrita com caneta tinteiro e o uso do mata borrão.
A situação dava mostras de melhorar,
quando meu pai nos avisou que encontrara uma casa no Alto de Santana o que,
pela distância, inviabilizava minha permanência no Buenos Aires. Informada por
minha mãe sobre a mudança, ao final da aula a professora teceu algumas palavras
de louvor na presença de todos, desejando-me felicidades. Um pequeno gesto de
simpatia que ficou na memória, como também de uma menina,
quando eu era recém-chegado. Ao ver minha aflição (eu estava quase chorando)
diante de exercícios sobre assuntos que eu não conhecia, sentou-se junto e
passou a explicar como resolvê-los. Das feições do seu
rosto eu me esqueci, mas ela era disposta, agradável e acolhedora. Mais tarde entendi que se
cristalizava ali um dos paradigmas da índole feminina.