No Alto de Santana
Em busca de uma vaga fui com meu pai
ao Grupo Escolar Frontino Guimarães, uma escola estadual situada próxima da casa para onde nos mudaríamos. O diretor, seu Araldo, uma figura de
cabelos brancos, rosto vermelho e expressão um tanto nervosa (devia estar
agastado ou inconformado com alguma coisa), deu algumas explicações ao meu pai
e acho que nem olhou para a minha cara. Pareceu-me que abria uma exceção ao me
aceitar em uma classe que estava em andamento.
Naquela altura eu, que aos poucos
estava me adaptando ao Buenos Aires, mudaria de casa, de ambiente escolar,
conheceria diferentes colegas e teria uma nova professora. A dona Odete, com seus de
óculos de aro fino e cabelos armados, devia ter entre 50 e 60 anos. À
primeira vista aparentava ser um tanto severa, impressão que com o tempo se
desfez, dando lugar à de uma profissional hábil e experiente. Ao perceber que
eu estava em descompasso com o programa curricular, recomendou que eu tomasse
aulas particulares de aritmética. Para me ensinar, indicou sua filha, que tinha uns 16 anos. As aulas eram ministradas em sua casa, situada
em frente à escola, em uma bela rua sem saída e próxima aos fundos da
biblioteca municipal. Depois de algumas semanas dona Odete achou que eu já
podia acompanhar a classe e me deu alta da atividade extra. Então eu já estava
ambientado e começava a aprender novas habilidades, como escrever textos a
partir de figuras de quadros que ela afixava na parede (composição) e redações
sobre temas significativos como “Minhas férias”.
A nova moradia ficava na rua Pedro
Doll 303, no Alto de Santana. Do lado esquerdo era conjugada com outra
idêntica. Abrindo-se o portão, descia-se alguns degraus por entre um pequeno jardim
até a porta de entrada, que ficava em um hall do lado direito, que por sua vez dava em um
corredor lateral seguido de um quintal em que havia um tanque de lavar roupas.
O quintal dava passagem para a casa dos fundos, situada em um plano inferior,
onde moravam dona Nina e seu Alfredo, os locatários. Na casa adjacente à
direita era separada da nossa por um muro baixo, em que era comum minha mãe e a vizinha
trocarem impressões próprias de vizinhas. A parede da sala era pintada de azul
celeste e tinha um relevo encrespado. Continuando, à esquerda havia uma espécie
de guarda-volumes e depois a copa, de paredes cor de rosa carregado e relevo em
formato de círculos concêntricos de gosto discutível. Tudo pintado com tinta a
óleo por seu Alfredo, que além de ser chofer de praça era pintor. A seguir a
cozinha, que se comunicava à direita com o quintal, e finalmente o banheiro
único. No andar de cima apenas dois quartos, sendo o menor para nós.
Até a escola eram 15 a 20 minutos de itinerário que eu fazia a pé, sozinho – resignado na ida e despreocupado na volta. Nas ruas Pedro Doll, Alphonsus de Guimarães, Francisca Julia e Paulo Gonçalves certas casas atraíam minha curiosidade para o que poderiam esconder em seu interior. Em cada uma eu via uma personalidade própria, que devia refletir a de seus moradores. A maioria tinha muros baixos ou as portas davam diretamente para a calçada. Uma delas, de esquina, exibia uma placa de consultório dentário e abrigava uma floreira com rosas. Eram perfumadas e de gosto até razoável, o que constatei nas vezes em que, com fome, regressava para casa.
Apesar de estar aclimatado, eu achava
a vida monótona por não ter com quem brincar. Em compensação, havia tarefas,
como ir com minha mãe à feira e naturalmente empurrar o carrinho. Ir até o
açougue para comprar coxão mole ou patinho, que às vezes eu tinha que moer em
um moedor de carne feito de ferro, que se prendia na borda da mesa. Ou comprar
pão na venda do seu Simplício em frente de casa. Administrado por ele e sua
família, o estabelecimento era modesto, mas tinha tudo o necessário - desde
gêneros alimentícios secos e molhados, artigos para limpeza da casa e asseio
corporal, graxa para sapato, tinta Super Quink azul real lavável (Parker), papel
de seda...até chicletes Adams e Ping Pong, balas de mel e de hortelã, e
doces de abóbora, batata e batata-doce de cores sugestivas. Foi nesse armazém
que, depois de juntar trocados comprei uma escova de dentes nova com a qual,
emocionado, presenteei minha mãe no seu dia. Não se tratou de uma escolha
qualquer, mas pensada, em que depois de analisar com parcimônia as
possibilidades, priorizei a relação custo-benefício. Afinal o exemplar que ela
usava já estava um tanto gasto...
Um contratempo naquele período foram os
episódios de terror noturno. Ao pegar no sono eu me via imerso em um vazio sem
dimensões definidas, escuro, sem saída, em que assomavam e desapareciam entes
estranhos. Acho que as situações diferentes que vivia e o fato de terem me saído
umas perebas na face contribuíram. Eu ia dormir logo após minha mãe aplicar
sobre elas compressas e um unguento receitados no hospital do Mandaqui.
Despertava chorando e minha mãe acudia, dando-me um copo d’água com açúcar.
Felizmente foram poucos.
Algumas leituras ajudaram-me a resistir às dificuldades da nova realidade. Peter Pan, da Editora Melhoramentos, livro ilustrado que meu pai me comprou em uma papelaria quando subíamos a Voluntários da Pátria, Os mais belos contos de fada tchecos (Editora Vechi) que ganhei possivelmente da madrinha do meu pai em sua formatura na ETAv (Escola Técnica de Aviação)e aqueles que adquiria com o dinheirinho que vinha do sul pelo correio junto com as ansiadas cartas de minha avó e minha tia Esther. Também as figurinhas dos desenhos animados A bela
adormecida e A dama e o vagabundo, sempre restritas à cota máxima de
três envelopes por vez, norma que foi rompida quando meu tio João veio do Sul e
nos ajudou a tirar o atraso em relação a este quesito, e Historinhas Semanais, mini revista comprada nas bancas. E o pequeno
jardim que, em um plano inferior e quase inacessível à vista de quem passava na
calçada, era um esconderijo favorável para eu admirar as plantas ou
concentrar-me em análises e reflexões.
Chegara afinal o dia do regresso do
meu irmão, após estadia de três meses na casa de minha avó. Fomos recebe-lo em
um domingo à tarde no aeroporto de Congonhas, em que desembarcou acompanhado de
uma aeromoça. Havia muita coisa para contar; todos estávamos animados e eu
em especial, pois teria com quem brincar e conversar.
Meu pai havia recentemente adquirido um aparelho televisor de 21 polegadas. De funcionamento por válvula e com monitor de tubo, demorava alguns minutos para as imagens surgirem. A marca era boa, Philco, e a caixa, de madeira clara. Junto vinha uma antena para regular a sintonia. Através dele, além da regalia de ver as belas Idalina de Oliveira e Neide Alexandre em comerciais de estúdio, assistimos a algumas séries de boa qualidade. A primeira, no canal 4, TV Tupi, foi Jet Jackson – o comandante Meteoro, com sua vibrante vinheta. No canal 7 (a antiga e boa TV Record), Steve Canyon, Roy Rogers, (que raramente víamos), Zorro (que por usar revolver, a princípio meu pai nos proibia de assistir), Bat Masterson (mais que do filme, gostávamos da música, que fez sucesso na voz de Carlos Gonzaga), Jim das Selvas (às terças feiras, com Johnny Weissmuller), Aventuras Submarinas (Lloyd Bridges), Ivanhoe (Roger Moore), Lassie e Fury - O cavalo selvagem (sábados à noite). Na TV Tupi Histórias Maravilhosas Bendix, O Menino do Circo, Rin Tin Tin, Vigilante Rodoviário (Carlos Miranda e o cão Lobo), Patrulheiros Toddy e Zorro (o Don Diego de la Vega, de roupa preta e espada). Na TV Cultura, Além da imaginação, que nos suscitava muita curiosidade, mas não nos era permitido assistir. E as encenações ao vivo - Brotos em Hi-Fi (Toni e Cely Campello), os infantis Pullman Junior (Marília Moreira) e Pim Pam Pum (Tupi), A turma dos Sete, Capitão 7, Astros do disco (estes na Record). Na Tupi O clube dos artistas, Almoço com as estrelas (Ayrton e Lolita Rodrigues), Alô doçura (John Herbert, Eva Wilma e Walter Forster) e O Sítio do Pica Pau Amarelo, em sua forma original produzida e narrada por Júlio Gouveia. Dos educativos, Sabatinas Maizena (uma competição entre escolares com direito a prêmios), apresentada na Tupi por Heitor de Andrade e cujo título da música de entrada era Jesu bleibet meine Freude da cantata 147 de JS Bach, tocado em uma espécie de sintetizador e com andamento rápido. No tempo em que ainda havia jornalismo, o Repórter Esso (com as últimas notícias da UPI) e o repórter Tico-Tico com sua Edição Extra e furos de reportagem. Na Record, ao término dos noticiários da Tupi, o Mappin Movietone, apresentado por Roberto Corte Real.
Três notícias, entre 1960 e 1961, estiveram em evidência na imprensa televisiva: a conquista dos títulos de peso galo por Éder Jofre, a viagem espacial de Yuri Gagarin em volta da terra, e o muro de Berlin - uma aberração erguida para impedir que as pessoas fugissem do setor oriental para o ocidental da cidade alemã.
Os que analisam o passado com a ótica do presente rotularão aqueles programas como simplistas e não condizentes com a realidade de hoje. É oportuno dizer que a visão de mundo que eu formava a partir das informações veiculadas era a de um menino em sua inocência e idealismo, que desconhecia a vida como ela é. Mas quais são os princípios que devem integrar o elenco básico de conhecimentos a serem ensinados a uma a criança? Que modelos de comportamento lhes devem ser mostrados? Salvo por poucas as exceções e pelo marketing sempre pervasivo, à parte de mostrarem ideais, valores e alguma cultura, as atrações de então tinham o dom de reunir a família. É certo que diante de uma tela, mas permitiam compartilhar sensações e trocar ideias sobre o que se via. Tal não ocorre em relação às telas - de vários tipos e tamanhos – e aos conteúdos que hoje param nas mãos de pirralhos que sequer saíram das fraldas.
Sobre os programas televisivos de então; ressalto que a maioria deles - ao vivo, musicais, de auditório e séries tinha mais qualidade e seu objetivo era o entretenimento. Sem as pregações ideológicas, “pautas identitárias”, sinalizações de virtude e bobagens afins que vogam por aí. Simplesmente o mal era sempre vencido pelo bem e os malfeitores e desonestos recebiam o castigo que mereciam.
Semanalmente, à noite, nos reuníamos na cozinha, à volta do rádio para ouvir a Escolinha da Dona Olinda, em que Nhô Totico interpretava dona Olinda e seus alunos de diferentes origens - o caipira, o estudioso, o nordestino, o turco, o lusitano, o japonês e o italiano, entre outras personagens.
Mesmo tendo acesso à TV e ao rádio eu gostava de ler o que me caía nas mãos. Em 1960 duas obras nos foram presenteadas por um dos irmãos do meu pai, o tio Sergio, que era vendedor de livros. Minha mãe recebeu uma Bíblia ilustrada, em dois volumes - o novo e o velho testamento. De encadernação luxuosa e capa vermelha, a edição primava por ilustrações a cores de matizes sinistras. Impressionaram-me em especial a figura de Lúcifer, a imagem de uma cisterna, as cenas do julgamento de Cristo, e sua tentação no alto de uma montanha com o diabo a oferecer-lhe “todos os reinos do mundo”, a figura de Barrabás, e o desespero de Judas a caminho da oliveira onde se enforcaria. No velho testamento o jovem Davi, com sua funda, a enfrentar Golias. Preocupado, eu perguntava à minha mãe como deveria proceder caso o capeta irrompesse à minha frente e ela dizia “faça o sinal da cruz e ele irá embora, às vezes deixando um cheiro de enxofre”. Isso me tranquilizava um pouco. Mas prefiro falar da coleção de três livros que ganhei, em capa dura, azul, chamada Paraíso Infantil - A palavra através da imagem e da cor, que seria meu vade mecum por algum tempo. Na simplicidade dos meus oito anos, emprestei-o à dona Maria do Carmo Rocha, inesquecível professora do terceiro ano primário, para que ela atestasse pessoalmente o quão instrutivo e interessante era o conteúdo de suas páginas. Desconfio que ela não chegou a ler.

