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O acordeonista




           Voltáramos ao bistrô onde nos havíamos conhecido. Os garçons de sempre, poucas mesas disponíveis e muito barulho. Orientais (coreanos?) próximos de nós falavam alto, em Inglês. Na mesa à nossa direita um casal, que logo depois receberia a companhia de outro; possivelmente amigos, aparentavam ser cineastas. Na sala contígua, reservada para fumantes, um grupo grande e animado - e o cheiro de cigarro chegando até nós.
           Ninguém se deu conta quando o acordeonista postou-se junto ao balcão de entrada para tocar. Era o mesmo das vezes anteriores, com seu jeito discreto e o boné de um modelo antigo.
           Naquela noite, o ambiente reunia ingredientes para estragar qualquer intenção de lirismo. Ainda assim ela parecia feliz. Estendendo-me sua mão em um gesto romântico, ao me fazer ouvir os acordes de uma antiga canção francesa que o pobre músico teimava em tocar, mostrava emoção no olhar. E eu, imerso em minhas abstrações, nem mesmo reconheci de início aquela música - era uma das que eu gostava - se bem que ele não a interpretasse lá muito bem. O que não fazia diferença, pois quase ninguém ali lhe prestava atenção. Concentrando-me então na melodia deixei a sensibilidade vencer a razão, atitude que me tornou magnânimo com os sons que ouvia e ajudou a continuar por mais um tempo ali - um recanto que anos antes da ampliação de seu espaço físico fora convidativo e intimista.
           E então animei-me ao reconhecer que ela sabia ser carinhosa até mesmo nas ocasiões em que o meio ambiente não era favorável.
           Ao deixamos a casa, ela observou à gerente detrás do balcão que o burburinho não permitia que se escutasse o músico. A moça assentiu com a cabeça, mas ficou claro que isso não era motivo de preocupação para ela. Em um último olhar, notei que o nosso acordeonista, também resignado, não desistiria de tocar, pois folheava sua pasta de partituras, como que a escolher o próximo número.                                                                                  
Momentos antes desse gesto - disse-me ela enquanto ganhávamos a rua - ele sorrira para nós...  
    


            L'accordéon (Serge Gainsbourg) - Juliette Greco