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Minha vinda para Santana - Parte IV

Eu já estava aclimatado ao Frontino Guimarães e às vezes recebia em casa algum colega para brincar. Os livros escolares eram as brochuras de Carolina Renó Ribeiro de Oliveira, em que se aprendiam as matérias do curso primário, inclusive cartografia. Por vezes eram organizadas excursões educativas para os alunos, como a que fizemos ao DETRAN para conhecer o sistema de controle de trânsito da cidade, ao Parque de Aeronáutica durante a Semana da Asa de 1962 e outras que agora não me ocorrem.

Os colégios onde estudamos têm lugar perene em nossa memória, assim com os professores. Alguns eram notáveis por sua competência, outros porque eram chatos. Mas havia aqueles de quem gostávamos.  Dona Maria do Carmo Rocha, à época com 54 anos, era uma educadora nata que nos ensinou, ao lado da matéria curricular, noções básicas de bom senso e relacionamento humano, tudo de forma paciente, amistosa e posso dizer, terna. Até para dar bronca ela tinha tato. Certa vez precisou faltar, sendo substituída por uma jovem inexperiente e que não sabia se impor, o que nós, meninos, interpretamos como um sinal verde para cair na bagunça. Fizemos uma bela algazarra. No dia seguinte, depois de chamar nossa atenção com firmeza, dona Maria do Carmo exortou-nos a tomar a água com que as meninas lavavam os pés à noite – como uma espécie de poção medicinal que faria com que nos comportássemos melhor. Dessa forma, amenizando a repreensão com bom humor ela passou-nos sua mensagem. Sob sua regência aprendemos a cantar hinos, entre os quais o Hino à Bandeira, o mais belo de todos. Aquela senhora, com quem tive aulas no terceiro ano primário, é  uma das minhas recordações carinhosas da infância.

Um acontecimento fatídico em agosto de 1961 - a renúncia do presidente da república e o que ocorreu a seguir nos trouxe preocupação. Minha mãe ouvindo as notícias no rádio, preocupada com o risco que corriam sua mãe e os irmãos, que moravam bem perto do palácio do governo do Rio Grande do Sul, onde se entrincheirara o governador.

Outro evento, esse com desfecho feliz, foi a copa do mundo de 1962. O jogo do Brasil contra a Espanha foi o mais dramático. Na rua acompanhávamos as partidas por autofalantes colocados nos postes. Na esquina do colégio ouvi pela voz do locutor que a Espanha estava vencendo por um a zero e já corria o segundo tempo. Voltei depressa para casa, imaginando um prognóstico sombrio. Mas ao chegar, minha mãe, que estava passando roupas, disse que o Brasil havia empatado. Dali a pouco o jogo viraria com o gol de Amarildo completando uma grande jogada de Mané Garrincha.

Nosso pequeno quintal não era tão pequeno que nos impedisse de jogar uma módica bola de borracha. Com o que ouvíamos das transmissões esportivas (narração de Raul Tabajara e comentários de Paulo Planet Buarque, na TV Record) e com o álbum de figurinhas da Copa aprendemos os nomes dos jogadores. Foram os titulares Zito, Coutinho, Gilmar, Mauro (e não Pelé, que pensávamos ser do São Paulo) os craques da seleção que nos motivaram a torcer para o Santos Futebol Clube - que depois soubemos ser o melhor time do país.

No Parque de Aeronáutica

Em uma tarde de fins de julho de 1962 um acontecimento previsto transformaria bastante nossa rotina – nova mudança, desta vez para o Parque de Aeronáutica. Depois de anos de espera, meu pai afinal conseguira vaga em um apartamento de dois quartos e mais espaçoso. Na área externa o espaço para brincar era de amplidão inimaginável comparado ao que dispúnhamos até então. Não me lembro dos detalhes, mas quando ele chegou, nossos pertences, que não eram muitos, estavam prontos para serem transportados. À noite, já relativamente instalados, jantamos no refeitório do cassino dos oficiais. De volta ao apartamento assistimos na TV Record ao desenho Manda Chuva.

Eu contava os dias que nos restavam de férias. Eram poucos, mas poderia fazer muitas coisas, entre as quais jogar futebol no campo ou na quadra, e empinar pipa. Na manhã seguinte à mudança, descemos para o amplo gramado detrás dos prédios de apartamentos para empinar uma “raia” que eu construíra e trouxera comigo. Entusiasmado com o céu livre de postes e fios de alta tensão, dei linha para a pipa e a vi subir tão alto como nunca. Isso me deu a emoção de transpor limites, mas em seguida fiquei um pouco temeroso, pois notei que lá em cima ela reagia menos ao meu comando. Chegaria o instante em que o vento me impediria de controlá-la? Não demorou e vieram um e outro menino. Um deles mostrou-se simpático e de modo diplomático comentou sobre a altitude alcançada pelo meu artefato; nos apresentamos e antes de sair desejou-me boas-vindas. Dali a pouco comecei a enrolar a linha no carretel; a pipa veio baixando devagar, e com tranquilidade consegui trazê-la intacta para mim. Eu estava feliz e animado com aquele começo.

Na época em que morávamos provisoriamente no campo de Marte eu ganhara de minha tia Esther uma bicicleta Mercswiss, cor de vinho e aro 18. Pouco pude usá-la. Com a mudança para a rua Pedro Doll ela permaneceu no guarda volumes da casa. Passados dois anos e meio, eu crescera para o tamanho da bicicleta, mas isso não tinha importância. Agora limpa e com a corrente lubrificada era só aprender a andar com desembaraço, coisa que acabou por acontecer espontaneamente.

Em uma tardinha eu estava no gramado junto ao escorregador, quando um menino se aproximou de forma amistosa, em sua bicicleta. Após as apresentações disse estar morando ali havia alguns meses. Ao saber da minha mudança recente ele sugeriu que saíssemos para percorrer as imediações. Assenti e com nossas bicicletas seguimos pedalando pela extensão das árvores, hangares e aviões, a subir e descer obstáculos. Era bom ter o espaço livre à frente. Uma sensação quase igual à que eu experimentara aos 3 ou 4 anos de idade, em uma festa de Natal na Base Aérea de Canoas quando, a bordo de um velocípede, resolvi correr em direção à pista (alertados por alguém, meus pais vieram me buscar). De volta do percurso ainda trocamos ideias sobre o que cada um queria ser na vida e ao nos despedirmos, agradeceu pela companhia. Achei-o bastante determinado para alguém com dez anos de idade. Aquele passeio representou para mim um bom presságio.

Eu acabara de entrar em um mundo pródigo de lugares para brincar e conhecer. E que seria meu lar pelos próximos anos, com seus atributos bons e ruins, conforme eu saberia ao longo do tempo.

Encerro aqui esta etapa, narrada em ordem cronológica não muito rigorosa, que cumpri em parceria com o menino que me guia quando escrevo sobre o passado distante. Se história continuará ou não, irá depender da disposição dele.                               


        O Parque de Aeronáutica de São Paulo (hoje PAMA SP) em foto atual 


Minha vinda para Santana - Parte III

Em outubro de 1960 fiz a primeira comunhão na igreja Nossa Senhora Sallete. Após semanas de catequese estávamos finalmente prontos para a grande dia. Eu já havia confessado na véspera e cumprido a penitência, o que me tornava apto a receber o sacramento. Não queria correr riscos, pois conforme minha mãe me dissera, se comungássemos em pecado a alma poderia eventualmente pegar fogo. 

Após ter recebido a eucaristia, compenetrado e de volta ao meu lugar – tal como havíamos ensaiado - eu matutava se havia engolido a hóstia ou se ela ficara presa no céu da boca. Deixei a dúvida de lado quando a beata instrutora passou diante de nós e muito animada nos conclamou a orar: “Rezem crianças, rezem muito! Hoje é o dia mais feliz da vida de vocês”! E inspirado por sua manifestação imperativa de euforia, rezei como nunca. Encerrada a cerimônia nos conduziram a um salão nos fundos da igreja onde, com a graça divina, estava à nossa disposição uma bela merenda, que nos possibilitou sair do jejum - e do estado de fervor em que nos encontrávamos.

Os livros a que tive acesso entre 1960 e o início de 1962 me cativaram definitivamente para o mundo da leitura, mas cito especialmente os infantis de Érico Veríssimo (Gente e bichos) e Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato. Embalado, lia espontaneamente tudo que encontrava, incluindo as Seleções do Reader’s Digest, Marcelino Pão e Vinho, e Pinocchio (o original de Carlo Collodi) e mais tarde o Tesouro da Juventude, presenteado pela tia Esther. Fui feliz em contar com uma boa biblioteca municipal, que ficava bem em frente ao colégio. Em meio de uma ampla área ajardinada, a casa era de estilo arquitetônico normando, a exemplo de um castelo que lhe ficava próximo. Era para onde íamos após concluir as lições de casa, ou as fazíamos lá mesmo. Mais do que uma biblioteca, simbolizava uma figura materna dadivosa a alimentar seus filhos com suas estantes repletas de livros infanto-juvenis, desenhos e pinturas sob o olhar de pacientes monitoras, sessões de cinema (O último dos moicanos) e danças de quadrilha e brincadeiras nas festas juninas. 

                                                                A biblioteca de Santana

Por tratar dessa época específica, reproduzo a seguir um parágrafo extraído da crônica D’un film à l’autre (abril de 2024): “...meu pai nos levou para assistir à sessão matutina do desenho A bela adormecida, produzido por Walt Disney. Era um feriado de 7 de setembro, em 1960. Pegamos um ônibus que nos deixou na avenida Ipiranga, onde ficava o cinema do mesmo nome. A sessão já tinha começado quando chegamos. Enlevados pela trama, personagens, cores e trilha sonora, vivemos momentos emocionantes, especialmente meu irmão que, com medo da figura da bruxa, próximo das cenas finais tratou de se esconder no banheiro. Para que ele saísse de lá tivemos que convencê-lo de que já não havia perigo. Depois daquela manhã histórica fizemos algumas incursões esparsas ao cinema levados por nossos familiares do sul, em Porto Alegre ou em São Paulo. Era uma festa quando eles vinham nos visitar. Foi em uma dessas ocasiões que conheci a menina Marisol, uma pequena atriz e cantora espanhola cativante, através do filme “Um raio de Luz”, que assisti com minha tia Esther em 1961. 

Em uma manhã de dezembro de 1961 eu havia recém entrado em férias, quando meu pai chegou em casa dizendo para me aprontar depressa porque à tarde sairia um avião para Porto Alegre. Planejávamos viajar em algumas semanas para a casa de minha avó Julieta e era a chance de eu ir antes. Mal tive tempo para pensar – minha mãe ajeitou rapidamente as roupas na mala, deu recomendação para comprar sapatos (disse eu estava precisando) e saímos os quatro - meu pai, eu, a mala, e o soldado que lhe dera carona – em uma lambreta. Um ligeiro frenesi no trecho de descida abrupta da Voluntários da Pátria, breve parada na loja de sapatos e chegamos ao Parque de Aeronáutica. O avião era um pequeno Beechcraft C-45, versão militar do Beech 18, conhecido como “Mata-sete” e sairia em seguida ao almoço. Eu ficaria aos cuidados de uma passageira que se encarregaria de me deixar na casa da minha avó. Viagem memorável, que me deu a oportunidade de regurgitar na roupa durante a turbulenta descida para pousar na Base Aérea de Canoas. E a expressão de surpresa de minha avó, ao aparecer na janela do quarto de cima para ver quem havia tocado a campainha...



Na casa da rua Pedro Doll o espaço era pequeno, ao contrário da nossa imaginação. A escada que dava para os quartos acabava em um mezanino minúsculo em frente ao qual uma janela de peitoril amplo servia de posto de observação onde meu irmão e eu conversávamos sobre atividades fictícias imaginando sermos adultos. Brincávamos de lutar com esgrimas de plástico e empinar capucheta, uma pequena pipa sem estrutura de varetas e feita com papel de jornal. Eu até havia arranjado um carretel de linha para fazê-las alçar voo, mas meu pai houve por bem escondê-lo; deixou uma pequena extensão apenas, dizendo que aquilo era suficiente para chegar até ao Parque de Aeronáutica (!). Inconformado, procurei o local onde estava escondido o carretel e quando descobri passei a cortar segmentos suplementares de linha para emendar na que sobrara até obter o que julguei ter uma extensão razoável. Provavelmente ele se preocupava com os fios de alta tensão, perigo que achávamos não existir, uma vez que só empinávamos no quintal e a altitude atingida não passava muito da do telhado. Mais tarde eu e meu irmão aprendemos a construir pipas com armação de taquara, papel de seda e cola de farinha, nos formatos de “raia” (arraia) ou peixinho, que utilizávamos e eventualmente vendíamos. Essas empinávamos na rua e com cuidado, porque aí sim havia o risco de se prenderem nos fios de eletricidade.

Durante o carnaval, enchíamos com água bisnagas de plástico e nos postávamos junto ao muro de casa para molhar os transeuntes. Sendo aquele um rito carnavalesco costumeiro dessa data e executado pelos pequenos, nunca tivemos grandes reclamações.

É comum na infância criarmos afinidade com pessoas as quais não nos interessa saber de onde saíram. Foi o caso de uma senhora que, presumo, teria sido madrinha de formatura do meu pai na ETAv, de sua filha e duas meninas, provavelmente netas, de idade aproximada da nossa. Roseli, de pele e cabelos claros e Rosemary, morena, com idade um pouco maior. Nunca soube se eram irmãs, meio irmãs, primas ou amigas. Moravam longe, na Aclimação. Não obstante as visitas serem esparsas, nosso entrosamento era tão natural que tão logo nos víamos saíamos a conversar e brincar animadamente como velhos amigos... e assim continuávamos o dia inteiro. Era uma interação rara - dada pouca frequência dos nossos encontros e por ser preciosa. Um dia minha mãe nos disse que elas haviam se mudado para outra cidade. Nunca mais as vimos. Junto ao bem-querer, ficou para mim a ideia do encanto feminino que na duas brotava ao despertarem para adolescência. Como teriam passado suas vidas e como estariam hoje?

Desde cedo, também por conta de nossos seguidos deslocamentos, compreendemos o grande valor da camaradagem. O contato inicial com famílias Cordeiro e Montenegro, oriundas do Rio de Janeiro, se deu quando éramos quase recém-chegados. Imagino que a empatia gerada pela identidade de princípios e ideais tenha sido o alicerce com o qual nossas famílias construíram uma amizade que dura até hoje.

Por vezes me acorrem à memória as reproduções de artrópodes que em 1960 meu pai fazia aos sábados de manhã quando estudava Biologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP à noite. Com paciência desenhava em papel manteiga, à lápis, os escorpiões que arranjava não sei onde. Não imaginava que as pinças que ele usava naquela atividade e os livros ‘Atlas de Histologia’ (Di Fiore) e ‘Bacteriologia e Imunologia’ (Otto Bier) viriam a ser úteis para meus estudos mais tarde... 

Devido à distância da cidade universitária e à dificuldade de transporte, meu pai teve que abrir mão do curso de Biologia. Foi então aprender Matemática Comercial e Financeira e passou a lecionar à noite no Colégio Dr. Bernardino de Campos, na Casa Verde. Daquele tempo ficaram na lembrança as provas dos alunos que ele empilhava na mesa da copa para corrigir em certas tardes de domingo. Mas, afora isso, nossos programas de domingo eram basicamente de dois tipos. De manhã, enquanto minha mãe preparava o almoço, meu pai assistia aos Concertos Matinais Mercedes Benz na TV Cultura, enquanto meu irmão e eu nos dedicávamos a destacar e colar figurinhas em álbuns sobre história, folclore e fauna brasileiras que ele nos trazia por considerá-las mais instrutivas que as vendidas nas bancas. Terminado o almoço, tirar a mesa, varrer o chão e secar a louça era atribuições dos filhos. Às 14h todos víamos as atrações do Circo do Arrelia, na TV Record. Mais tarde, às 20h na Tupi, a esperada série Papai sabe tudo (https://www.youtube.com/watch?v=mKeBsmfHx_s) com Robert Young e Jane Wyatt. 

Noutras vezes, após o almoço íamos à casa de nossos avós paternos da Bahia - vô Heitor e vó Leonídia, a quem conhecêramos em São Paulo. Meu irmão e eu não nos sentíamos exatamente satisfeitos por carregar as sacolas com mantimentos. Era um trajeto de ônibus até o subúrbio do Imirim e mais 20 minutos de caminhada até sua casa. No princípio inexistia asfalto, pois o bairro apenas começava a se urbanizar. Em nossa primeira viagem, ao ouvir minha mãe reclamar, meu pai vaticinou “Meu bem, daqui a 50 dias isso aqui estará uma beleza!” Acho que ele só queria acalmá-la - o asfalto acabou vindo, mas tardiamente à sua previsão. A casa, construída pelas mãos do meu avô, era bem simples; integrava um complexo que incluía nos fundos a habitação em que moravam tio Onídio, tia Dozinda e suas numerosas filhas, e uma outra menor, em obras. Entrava-se na a sala e na sequência vinha um corredor, que dava para três quartos de dormir, cozinha, e do lado de fora um tanque de lavar roupas, o banheiro e um poço. Cortinas de tiras longas, multicores, faziam as vezes das portas dos quartos.

Usualmente precisávamos sair de lá de banho tomado. A razão é que em companhia de dois primos de idades próximas às nossas, nos aventurávamos pelo relevo um tanto acidentado das redondezas, havendo grande probabilidade de regressarmos paramentados de barro dos pés à cabeça. No final dessas tardes era servido um lanche constituído de algum quitute artesanal básico, bolo e naturalmente Ki Suco - refeição precedida de uma breve oração do meu avô, que agradecia formalmente a Deus pela dádiva. Era um ensejo para nos reunirmos à mesa com diferentes primos, primas, tios e tias, entre as quais nossa tia Maria, irmã mais jovem do meu pai, a quem nos afeiçoamos bastante. Tia Maria trabalhava nas lojas Clipper e costumava trazer guloseimas ou brinquedinhos nas vezes em que vinha em casa - a exemplo do meu a avô, que se notabilizou por trazer doce de gergelim a granel, que vinha embrulhado em celofane e papel de padaria.  Ao receber um abraço e um cheiro ele agradecia com um humilde “obrigado” e então abria seu caderno em que transcrevia salmos, que lia e interpretava para nós. Aquele senhor afável, de barba branca e olhos azuis, que trabalhara na lavoura no interior da Bahia, otimista, agora procurava ganhar alguma quantia vendendo biju e geleia real em suas andanças.

Daquele período, guardo no meu acervo afetivo musical uma melodia instrumental (https://www.youtube.com/watch?v=ryrEPzsx1gQ) composta pelo engenheiro de som Joe Meek e lançada em 1962 por The Tornados. Meek teve uma vida conturbada e efêmera, mas sua música não. Se alguma melodia tinha a capacidade de evocar entusiasmo e crença em um futuro promissor, era Telstar. Emoção de cunho um pouco diverso eu tinha ao ouvir valsa Criança Feliz, cantada por Francisco Alves e o coro das crianças da Casa de Lázaro (https://youtu.be/fjvdbAvN8m8?si=U8eKhY6JD2UwSphm), em cuja abertura a locutora Lucia Helena declamava assim: “Brincando marcha o menino de hoje, lutando marchará o menino de amanhã. Crianças despreocupadas desse Brasil-Menino cujas glórias hão de colher os homens grandes que dominarão o Brasil-Gigante; esse Brasil grandioso que eu canto, que as crianças da Casa de Lázaro, felizes, cantarão numa esperança de vitórias e de alegrias”. E “A noite do meu bem”, canção criada e gravada por Dolores Duran em 1959 – de melodia sublime e versos que em seu epílogo denotavam uma promessa romântica não plenamente cumprida (https://www.youtube.com/watch?v=DO0rifW5lAA).












Minha vinda para Santana - Parte II

 No Alto de Santana

Em busca de uma vaga fui com meu pai ao Grupo Escolar Frontino Guimarães, uma escola estadual situada próxima da casa para onde nos mudaríamos. O diretor, seu Araldo, uma figura de cabelos brancos, rosto vermelho e expressão um tanto nervosa (devia estar agastado ou inconformado com alguma coisa), deu algumas explicações ao meu pai e acho que nem olhou para a minha cara. Pareceu-me que abria uma exceção ao me aceitar em uma classe que estava em andamento.

Naquela altura eu, que aos poucos estava me adaptando ao Buenos Aires, mudaria de casa, de ambiente escolar, conheceria diferentes colegas e teria uma nova professora. A dona Odete, com seus de óculos de aro fino e cabelos armados, devia ter entre 50 e 60 anos. À primeira vista aparentava ser um tanto severa, impressão que com o tempo se desfez, dando lugar à de uma profissional hábil e experiente. Ao perceber que eu estava em descompasso com o programa curricular, recomendou que eu tomasse aulas particulares de aritmética. Para me ensinar, indicou sua filha, que tinha uns 16 anos. As aulas eram ministradas em sua casa, situada em frente à escola, em uma bela rua sem saída e próxima aos fundos da biblioteca municipal. Depois de algumas semanas dona Odete achou que eu já podia acompanhar a classe e me deu alta da atividade extra. Então eu já estava ambientado e começava a aprender novas habilidades, como escrever textos a partir de figuras de quadros que ela afixava na parede (composição) e redações sobre temas significativos como “Minhas férias”.

A nova moradia ficava na rua Pedro Doll 303, no Alto de Santana. Do lado esquerdo era conjugada com outra idêntica. Abrindo-se o portão, descia-se alguns degraus por entre um pequeno jardim até a porta de entrada, que ficava em um hall do lado direito, que por sua vez dava em um corredor lateral seguido de um quintal em que havia um tanque de lavar roupas. O quintal dava passagem para a casa dos fundos, situada em um plano inferior, onde moravam dona Nina e seu Alfredo, os locatários. Na casa adjacente à direita era separada da nossa por um muro baixo, em que era comum minha mãe e a vizinha trocarem impressões próprias de vizinhas. A parede da sala era pintada de azul celeste e tinha um relevo encrespado. Continuando, à esquerda havia uma espécie de guarda-volumes e depois a copa, de paredes cor de rosa carregado e relevo em formato de círculos concêntricos de gosto discutível. Tudo pintado com tinta a óleo por seu Alfredo, que além de ser chofer de praça era pintor. A seguir a cozinha, que se comunicava à direita com o quintal, e finalmente o banheiro único. No andar de cima apenas dois quartos, sendo o menor para nós.

Até a escola eram 15 a 20 minutos de itinerário que eu fazia a pé, sozinho – resignado na ida e despreocupado na volta. Nas ruas Pedro Doll, Alphonsus de Guimarães, Francisca Julia e Paulo Gonçalves certas casas atraíam minha curiosidade para o que poderiam esconder em seu interior. Em cada uma eu via uma personalidade própria, que devia refletir a de seus moradores. A maioria tinha muros baixos ou as portas davam diretamente para a calçada. Uma delas, de esquina, exibia uma placa de consultório dentário e abrigava uma floreira com rosas. Eram perfumadas e de gosto até razoável, o que constatei nas vezes em que, com fome, regressava para casa.


O então Grupo Escolar Frontino Guimarães

No segundo ano primário - 1960

Apesar de estar aclimatado, eu achava a vida monótona por não ter com quem brincar. Em compensação, havia tarefas, como ir com minha mãe à feira e naturalmente empurrar o carrinho. Ir até o açougue para comprar coxão mole ou patinho, que às vezes eu tinha que moer em um moedor de carne feito de ferro, que se prendia na borda da mesa. Ou comprar pão na venda do seu Simplício em frente de casa. Administrado por ele e sua família, o estabelecimento era modesto, mas tinha tudo o necessário - desde gêneros alimentícios secos e molhados, artigos para limpeza da casa e asseio corporal, graxa para sapato, tinta Super Quink azul real lavável (Parker), papel de seda...até chicletes Adams e Ping Pong, balas de mel e de hortelã, e doces de abóbora, batata e batata-doce de cores sugestivas. Foi nesse armazém que, depois de juntar trocados comprei uma escova de dentes nova com a qual, emocionado, presenteei minha mãe no seu dia. Não se tratou de uma escolha qualquer, mas pensada, em que depois de analisar com parcimônia as possibilidades, priorizei a relação custo-benefício. Afinal o exemplar que ela usava já estava um tanto gasto...

Um contratempo naquele período foram os episódios de terror noturno. Ao pegar no sono eu me via imerso em um vazio sem dimensões definidas, escuro, sem saída, em que assomavam e desapareciam entes estranhos. Acho que as situações diferentes que vivia e o fato de terem me saído umas perebas na face contribuíram. Eu ia dormir logo após minha mãe aplicar sobre elas compressas e um unguento receitados no hospital do Mandaqui. Despertava chorando e minha mãe acudia, dando-me um copo d’água com açúcar. Felizmente foram poucos.

Algumas leituras ajudaram-me a resistir às dificuldades da nova realidade. Peter Pan, da Editora Melhoramentos, livro ilustrado que meu pai me comprou em uma papelaria quando subíamos a Voluntários da Pátria, Os mais belos contos de fada tchecos (Editora Vechi) que ganhei possivelmente da madrinha do meu pai em sua formatura na ETAv (Escola Técnica de Aviação)e aqueles que adquiria com o dinheirinho que vinha do sul pelo correio junto com as ansiadas cartas de minha avó e minha tia Esther. Também as figurinhas dos desenhos animados A bela adormecida e A dama e o vagabundo, sempre restritas à cota máxima de três envelopes por vez, norma que foi rompida quando meu tio João veio do Sul e nos ajudou a tirar o atraso em relação a este quesito, e Historinhas Semanais, mini revista comprada nas bancas. E o pequeno jardim que, em um plano inferior e quase inacessível à vista de quem passava na calçada, era um esconderijo favorável para eu admirar as plantas ou concentrar-me em análises e reflexões.   

Chegara afinal o dia do regresso do meu irmão, após estadia de três meses na casa de minha avó. Fomos recebe-lo em um domingo à tarde no aeroporto de Congonhas, em que desembarcou acompanhado de uma aeromoça. Havia muita coisa para contar; todos estávamos animados e eu em especial, pois teria com quem brincar e conversar.

Meu pai havia recentemente adquirido um aparelho televisor de 21 polegadas. De funcionamento por válvula e com monitor de tubo, demorava alguns minutos para as imagens surgirem. A marca era boa, Philco, e a caixa, de madeira clara. Junto vinha uma antena para regular a sintonia. Através dele, além da regalia de ver as belas Idalina de Oliveira e Neide Alexandre em comerciais de estúdio, assistimos a algumas séries de boa qualidade. A primeira, no canal 4, TV Tupi, foi Jet Jackson – o comandante Meteoro, com sua vibrante vinheta. No canal 7 (a antiga e boa TV Record), Steve Canyon, Roy Rogers, (que raramente víamos), Zorro (que por usar revolver, a princípio meu pai nos proibia de assistir), Bat Masterson (mais que do filme, gostávamos da música, que fez sucesso na voz de Carlos Gonzaga), Jim das Selvas (às terças feiras, com Johnny Weissmuller), Aventuras Submarinas (Lloyd Bridges), Ivanhoe (Roger Moore), Lassie e Fury - O cavalo selvagem (sábados à noite). Na TV Tupi Histórias Maravilhosas Bendix, O Menino do Circo, Rin Tin Tin, Vigilante Rodoviário (Carlos Miranda e o cão Lobo), Patrulheiros Toddy e Zorro (o Don Diego de la Vega, de roupa preta e espada). Na TV Cultura, Além da imaginação, que nos suscitava muita curiosidade, mas não nos era permitido assistir. E as encenações ao vivo - Brotos em Hi-Fi (Toni e Cely Campello), os infantis Pullman Junior (Marília Moreira) e Pim Pam Pum (Tupi), A turma dos Sete, Capitão 7, Astros do disco (estes na Record). Na Tupi O clube dos artistas, Almoço com as estrelas (Ayrton e Lolita Rodrigues), Alô doçura (John Herbert, Eva Wilma e Walter Forster) e O Sítio do Pica Pau Amarelo, em sua forma original produzida e narrada por Júlio Gouveia. Dos educativos, Sabatinas Maizena (uma competição entre escolares com direito a prêmios), apresentada na Tupi por Heitor de Andrade e cujo título da música de entrada era Jesu bleibet meine Freude da cantata 147 de JS Bach, tocado em uma espécie de sintetizador e com andamento rápido. No tempo em que ainda havia jornalismo, o Repórter Esso (com as últimas notícias da UPI) e o repórter Tico-Tico com sua Edição Extra e furos de reportagem. Na Record, ao término dos noticiários da Tupi, o Mappin Movietone, apresentado por Roberto Corte Real. 

Três notícias, entre 1960 e 1961, estiveram em evidência na imprensa televisiva: a conquista dos títulos de peso galo por Éder Jofre, a viagem espacial de Yuri Gagarin em volta da terra, e o muro de Berlin - uma aberração erguida para impedir que as pessoas fugissem do setor oriental para o ocidental da cidade alemã.   

Os que analisam o passado com a ótica do presente rotularão aqueles programas como simplistas e não condizentes com a realidade de hoje. É oportuno dizer que a visão de mundo que eu formava a partir das informações veiculadas era a de um menino em sua inocência e idealismo, que desconhecia a vida como ela é.  Mas quais são os princípios que devem integrar o elenco básico de conhecimentos a serem ensinados a uma a criança? Que modelos de comportamento lhes devem ser mostrados? Salvo por poucas as exceções e pelo marketing sempre pervasivo, à parte de mostrarem ideais, valores e alguma cultura, as atrações de então tinham o dom de reunir a família. É certo que diante de uma tela, mas permitiam compartilhar sensações e trocar ideias sobre o que se via. Tal não ocorre em relação às telas - de vários tipos e tamanhos – e aos conteúdos que hoje param nas mãos de pirralhos que sequer saíram das fraldas.

Sobre os programas televisivos de então; ressalto que a maioria deles - ao vivo, musicais, de auditório e séries tinha mais qualidade e seu objetivo era o entretenimento. Sem as pregações ideológicas, “pautas identitárias”, sinalizações de virtude e bobagens afins que vogam por aí. Simplesmente o mal era sempre vencido pelo bem e os malfeitores e desonestos recebiam o castigo que mereciam.

Semanalmente, à noite, nos reuníamos na cozinha, à volta do rádio para ouvir a Escolinha da Dona Olinda, em que Nhô Totico interpretava dona Olinda e seus alunos de diferentes origens - o caipira, o estudioso, o nordestino, o turco, o lusitano, o japonês e o italiano, entre outras personagens.

Mesmo tendo acesso à TV e ao rádio eu gostava de ler o que me caía nas mãos. Em 1960 duas obras nos foram presenteadas por um dos irmãos do meu pai, o tio Sergio, que era vendedor de livros. Minha mãe recebeu uma Bíblia ilustrada, em dois volumes - o novo e o velho testamento. De encadernação luxuosa e capa vermelha, a edição primava por ilustrações a cores de matizes sinistras.  Impressionaram-me em especial a figura de Lúcifer, a imagem de uma cisterna, as cenas do julgamento de Cristo, e sua tentação no  alto de uma montanha com o diabo a oferecer-lhe “todos os reinos do mundo”, a figura de Barrabás, e o desespero de Judas a caminho da oliveira onde se enforcaria. No velho testamento o jovem Davi, com sua funda, a enfrentar Golias.  Preocupado, eu perguntava à minha mãe como deveria proceder caso o capeta irrompesse à minha frente e ela dizia “faça o sinal da cruz e ele irá embora, às vezes deixando um cheiro de enxofre”. Isso me tranquilizava um pouco. Mas prefiro falar da coleção de três livros que ganhei, em capa dura, azul, chamada Paraíso Infantil A palavra através da imagem e da cor, que seria meu vade mecum por algum tempo. Na simplicidade dos meus oito anos, emprestei-o à dona Maria do Carmo Rocha, inesquecível professora do terceiro ano primário, para que ela atestasse pessoalmente o quão instrutivo e interessante era o conteúdo de suas páginas. Desconfio que ela não chegou a ler.





Minha vinda para Santana - Parte I

Em princípios de 1959 nossa família chegou a São Paulo vinda de Curitiba, após 16 horas de uma viagem de trem com sucessivas trocas programadas de locomotiva – no início a vapor, depois a diesel e por fim, elétrica. Era de manhã bem cedo quando desembarcamos na Estação da Luz que, juntamente com a praça, foram os primeiros cenários que vi. Rumamos direto para o apartamento de um irmão do meu pai, que nos daria hospedagem até acharmos uma acomodação estável. O tio Adolfo morava com a família em um subúrbio da zona norte chamado Chora Menino, um nome que de cara achei estranho. No trajeto pela avenida Tiradentes passamos por edifícios de aspecto banal e avistamos as torres altas da ponte das Bandeiras. Nada que fosse bonito ou revelasse hospitalidade.  

O apartamento era pequeno, mas nos acomodaram da melhor maneira possível. Havia uma expectativa animada no ar e todos conversavam bastante. À noite dormimos no chão, para variar, em cobertas improvisadas na sala. Tocava no rádio, a música Cachito mio, que ficaria ecoando em meus ouvidos pelos dias seguintes, quando saímos para nos alojar no hotel de trânsito da Aeronáutica até meu pai encontrar uma casa de aluguel, o que não demorou.

No Tucuruvi

A casa se situava à Rua Paulo Maldi, no bairro do Tucuruvi, zona norte. Era de esquina e bem modesta; atrás do muro baixo um quintal de cimento, um canteirinho de flores e a porta de entrada, que com uma janela de abrir compunha a fachada. Na rua contígua, em declive, uma passagem dava acesso aos moradores de outra casa, situada em um plano inferior. Nossa refeição inaugural ali foi um jantar improvisado, bem como era a mobília de caixotes de mudança, em que viera, entre algumas coisas, uma geladeira usada da marca Norge.

Além do desalento de estar geograficamente mais afastado dos familiares do Sul, o que eu enxergava era pouco atrativo. A primeira imagem a me despertar algum interesse foram as luzes dos arranha-céus do centro da cidade, que meu pai nos mostrou certa noite. Antigamente o centro de São Paulo era visível para quem estivesse em alguns pontos elevados da zona norte e o Tucuruvi era um deles.

À medida que me acostumava ao novo habitat, comecei a pesquisar programas radiofônicos e nessa tarefa achei “Bandas de todas as bandas”. Às 7h30 da manhã eu ia ao quarto dos meus pais onde ficava o rádio de válvula e estojo de madeira para ouvir, empolgado, as altissonantes e belas marchas. Depois, por ondas médias, foi a vez dos dramáticos acordes iniciais da abertura do Concerto para Piano em Si bemol menor do Tchaikovsky, vinheta da novela que minha mãe acompanhava ao passar roupas.

De posse de um material escolar de segunda mão - mochila, caderno, lápis, borracha e régua que haviam sido doados pelos filhos dos padrinhos portugueses do meu irmão, e também da Cartilha Sodré, eu estava pronto para iniciar meus estudos. O Educandário Santo Antônio era uma escola pública situada na Avenida Nova Cantareira. Em sua fachada, no alto, uma placa informava: “...este estabelecimento de ensino é destinado a pessoas sem recursos financeiros...”. Porém, todos estudavam lá, independentemente de classe social, cor ou credo, até o menino que morava em uma bela residência (para mim, um palacete) na nossa rua. Eram aproximadamente quatro quarteirões que eu caminhava sozinho até lá, pois minha mãe tinha que cuidar de meus irmãos menores. Uma vez na avenida eu seguia atravessando com cuidado as transversais até chegar ao meu destino. O trânsito de veículos não era excessivo, tendo ficado na lembrança o Chevrolet 1945 de cor preta, comumente utilizado como taxi, e nas esquinas dois ou três casarões que me causavam curiosidade. Antes de tocar o sinal para a entrada jogávamos “bafo’ debaixo de uma escada que dava acesso à marquise. Ao término das aulas, o alvoroço da saída e na calçada os vendedores de cocada, rapadura e puxa-puxa compunham o cenário daquelas tardes luminosas.

Eu tinha seis anos. Meu círculo próximo era representado por entidades definidas – a rua de paralelepípedos, a casa simples em que morávamos, a escola ainda mais simples, e o mercado municipal onde, em missões designadas por minha mãe, eu ia comprar mantimentos, entre os quais óleo de cozinha a granel – eu levava uma garrafa de vidro vazia (do tamanho das de pinga) que o merceeiro enchia a partir de um reservatório e depois tampava com rolha, tudo o prático e provavelmente higiênico. 

Recapitulando agora tais incumbências, vejo-me certo dia a meio caminho do mercado, quando dou por falta do dinheiro que levava. Neste ponto as cenas são nítidas – eu revirava os bolsos e nada...após o sobressalto inicial veio o temor de voltar para casa de mãos abanando. Comecei a rezar, mas a princípio não funcionou – possivelmente o destinatário que invoquei era genérico. Se cheguei a me ajoelhar, não me lembro; o fato é uma senhora se aproximou para saber o que estava acontecendo. Quando ela se foi, concentrei-me e avistei em pensamento minha mãe a aconselhar sobre qual procedimento adotar em situações afins - acender uma vela para o ‘Negrinho Pastoreio’. Não tendo nenhuma vela para acender, apelei para ele em oração. Em seguida fiz o caminho inverso ao que percorrera até ali. E próximo de onde eu havia parado, lá estavam no chão, dobradas, as notas de cruzeiros. Agradecido e com a alma tranquila retomei meu percurso, com a convicção de que, se futuramente me achasse em apuro semelhante, recorreria à personagem salvadora do ‘Negrinho do Pastoreio’. 

Dona Martha, a professora do primeiro ano, era uma figura neutra, sem traços marcantes, salvo pela ocasião em que me tomou um apito com o qual eu anunciara o início do horário do recreio. Eu havia feito o anúncio de forma eloquente e absolutamente espontânea, mas ela não quis saber. Nunca mais vi o apito, apesar de eu lhe ter mostrado um bilhete escrito por minha mãe solicitando-o de volta. Levou-o embora e acredito que tenha se divertido bastante com ele. Concluí que ela não tinha espírito esportivo. Esta deve ter sido a experiência inicial a revelar meu inconformismo diante das injustiças do mundo.

No educandário recebi das aulas de catecismo uma versão elementar sobre a origem do universo. Entendi quando me disseram que Deus o criou em seis dias e dedicou o sétimo a um merecido descanso. Não gostei da representação ilustrada da serpente enrolada nos galhos de uma macieira a tentar a companheira de Adão. Entendi perfeitamente, embora apreensivo, o teor da maldição dirigida ao casal por Eva ter provado a maçã: “a partir de agora ganharás o pão com o suor do teu rosto” - um prognóstico ao qual estou sujeito até os dias de hoje. Mas não entendia como a primeira mulher teria sido criada a partir da costela do Adão ou porque Deus teria dito: “crescei e multiplicai-vos”. Claro que então eu ignorava o processo pelo qual os seres procriavam, mas quando vim a saber entendi menos ainda – quer dizer que os filhos de Adão e Eva transariam entre si com vistas a constituir uma prole? E Caim, de onde teria surgido? Tais eventos, incluindo a tentação de Eva e o torpe assassinato de Abel teriam sido resultantes do livre arbítrio? Teriam ocorrido por acaso ou por um motivo? Na minha interpretação as histórias que nos contavam não seriam mais do que dogmas que atestavam a existência atemporal da maldade humana. Concluí que era melhor não pensar demais no assunto, pois era coisa para Deus resolver, dado que tinha sido Ele o criador do mundo. E eu já tinha outros propósitos importantes, entre eles aprender a ler e escrever, amarrar cordão de sapato, tomar banho sozinho, e melhorar algumas técnicas, como jogar bolinha de gude em chão de terra batida. E rezar orações, naturalmente, o que minha mãe pacientemente nos ensinou.

Havia no quarteirão vizinho ao que eu morava um terreno baldio, onde às vezes se jogava bola e que era em algumas partes recoberto por mato. Um dia, perambulando por ali, deparei-me com um gato. Parecia imóvel – e logo constatei que estava morto. Tomado por curiosidade infantil voltei para pegar uma faca, que juntei a uma espécie de espeto de madeira que encontrei nas proximidades. Munido destes instrumentos, iniciei minha primeira atividade de dissecção, que acredito teria sido promissora caso minha mãe não tivesse me chamado para cumprir alguma tarefa doméstica ou escolar. Quando no dia seguinte, com a curiosidade aguçada voltei a campo, não pude continuar - o odor que ali pairava impediu que eu prosseguisse com minha empreitada científica.

Em outubro de 1959 nos mudamos provisoriamente para o Campo de Marte, junto ao Aeroclube. A moradia era melhor, mas a distância impedia que eu fosse à escola por meus próprios meios. Meu pai então providenciou o transporte – em geral um caminhão coberto por um toldo e, às vezes, um Jeep militar.

As datas e imagens que me acorrem são nebulosas, mas uma espécie de confraternização de encerramento das aulas ocorreria na classe em dezembro, ocasião em que cada aluno devia trazer um prato de comida. Havia muita animação na sala ante a iminência de comer coisas gostosas e que continuou à medida que as degustávamos. O convescote já ia pelas tantas quando um bolo chamado “floresta negra” - segundo os comentários admirados – apareceu na sala trazido por uma colega e a respectiva mãe. Bastante elogiado por dona Martha, se distinguia claramente das marias moles, bons bocados, bolos de fubá e iguarias frugais que ainda restavam na mesa. Eu jamais vira um bolo requintado como aquele. Pena que sua chegada triunfal foi tardia, porque ocorreu no momento em que a turma já estava de barriga cheia. Não me lembro se alguém chegou a prová-lo ou - hipótese mais plausível - teria se prestado só para exibição. 

O que aconteceu com o Educandário Santo Antônio?

O Educandário Santo Antônio, onde cursei a primeira série do primário, era mantido pela extinta Fundação Imperatriz Dona Maria Leopoldina em parceria com a LBA e existia desde os anos 40, conforme me inteirei ao pesquisar sobre suas origens. Um dia, acho que em fins década de 1960, ao passar pelo local vi que o imóvel não estava mais lá e sim um posto de gasolina. Fiquei decepcionado, mas não procurei na ocasião saber em que circunstâncias a escola desaparecera. Como escreveu o psiquiatra inglês Anthony Daniels (codinome Theodore Dalrymple), por ser jovem eu ainda não achava o passado mais interessante que o futuro e acreditava que o presente nunca se transformaria em passado. O preço pelo atraso em investigar é que hoje, das diretorias regionais de ensino não é possível obter nenhuma informação - um triste descaso do estado com a memória das pequenas escolas.* O que é bom não deveria mudar, talvez apenas passar por adaptações no decorrer do tempo. Como qualquer trabalho que nos passa a ideia de confiabilidade, se preservado e cuidado com carinho, sobrevive ao tempo. Mas será certamente destruído e esquecido se tratado com desleixo 

A escola não possuía equipamentos ou enfeites e o pátio interno devia ser bem pequeno, se é que havia um. Mas foi lá que eu e meus colegas - cuja fisionomia eu reconheço - aprendemos a ler e escrever pela mão de uma professora empenhada em sua nobre função. Como testemunho material restou-me apenas a foto dos alunos da classe junto com dona Martha.  


*Post scriptum
Nas diligências para encontrar alguma informação sobre o destino do educandário salvo poucas exceções, esbarrei na indiferença de quem poderia ajudar. Garimpei e achei registros da existência da escola na Biblioteca Nacional, em acervos de jornal e no Diário Oficial. O que pude apurar é que em 4/3/1964 o educandário foi transferido para o Externato Popular São Vicente de Paulo, passando a funcionar com a denominação de 32ª Escola Mista Emergência do Externato Popular São Vicente de Paulo. Depois disso foi anexado a uma escola próxima, o Grupo Escolar Expedicionário Brasileiro. A partir daí, não localizei mais informações sobre a escola. 

De novo no hotel de trânsito

Em março de 1960 nos mudamos novamente para o hotel de trânsito da Aeronáutica à espera que meu pai conseguisse uma casa de aluguel, o que aconteceria dali a um ou dois meses. Foi um tempo difícil – não era possível brincar e conversar com uma irmã que acabara de sair da fase de lactente e meu irmão estava morando temporariamente na casa da minha avó, em Porto Alegre. Além disso, as sucessivas alternâncias de moradia - três diferentes em um período de apenas 4 meses - eram um obstáculo à minha adaptação. Entrei para o segundo ano primário no antigo Grupo Escolar Buenos Aires algumas semanas depois de iniciado o ano letivo. Do portão da rua Lusitana eram cinco quadras que sob o sol da tarde eu tinha que vencer até chegar ao prédio da escola, na avenida Cruzeiro do Sul – uma construção antiga, com interior de pé direito alto, colunas gregas (jônicas?) e largas escadarias.

Fui bem recebido pela professora, que me apresentou formalmente à classe. Porém, percebi que todos já se conheciam. Sendo assim, aliado ao fato de estar defasado nas matérias, eu era um forasteiro. A maior parte do horário de recreio eu permanecia só, com meus botões, circunstância propícia para que eu me iniciasse na prática de meditação transcendental. Outras experiências proveitosas nesse período foram a aprendizagem da escrita com caneta tinteiro e o uso do mata borrão.

A situação dava mostras de melhorar, quando meu pai nos avisou que encontrara uma casa no Alto de Santana o que, pela distância, inviabilizava minha permanência no Buenos Aires. Informada por minha mãe sobre a mudança, ao final da aula a professora teceu algumas palavras de louvor na presença de todos, desejando-me felicidades. Um pequeno gesto de simpatia que ficou na memória, como também de uma menina, quando eu era recém-chegado. Ao ver minha aflição (eu estava quase chorando) diante de exercícios sobre assuntos que eu não conhecia, sentou-se junto e passou a explicar como resolvê-los. Das feições do seu rosto eu me esqueci, mas ela era disposta, agradável e acolhedora. Mais tarde entendi que se cristalizava ali um dos paradigmas da índole feminina.