Olho a
estante, onde à meia altura, estão dispostos álbuns de fotografias. Escolho um
ao acaso. Ter o passado bem à minha frente...do mesmo jeito que já foram um
dia, pessoas e lugares ali sobrevivem, resguardados no celulóide.
A foto mostra uma casa de fachada de azulejos coloridos com
desenhos delicados e dizeres em espanhol. Junto ao portão, uma mulher jovem de
sorriso espontâneo e ao mesmo tempo envergonhado, o que lhe dá um encanto
incomum.
A imagem me conduz à estação ferroviária de Sevilha, no ano de
1986. Faltava pouco para as dez da noite quando desembarcamos. Depois de três
dias viajando em vagões de segunda classe você acaba restringido suas ambições
na vida a coisas simples como banho quente e cama. Eu receava não encontrar
acomodação disponível para aquela noite, por isso, pedi que ela tomasse conta
da bagagem enquanto iria atrás de um telefone.
Não haver turistas japoneses em volta era um fato positivo, pois eles
sempre achavam os lugares mais baratos antes que nós. Em especial aqueles de
calças curtas e mochila nas costas. Mas o guia Frommers indicava uma hospedaria no bairro judeu. Quarto duplo,
“mobília charmosa”, com banho privativo, 20 dólares. Ótimo. Mas o telefone
público não aceitava minha ficha ou provavelmente estava com defeito. Eu
procurava manter a calma, quando me apareceu uma figura masculina insólita. De
constituição miúda, era quase um anão. Seus olhinhos demonstravam uma
vivacidade que não combinava com a textura da pele e a cor dos cabelos, já
gastos pelo tempo. Nos primeiros filmes do Werner Herzog havia uma personagem
muito parecida, quem sabe não seria ela própria? Sem dar importância à minha
expressão de estranheza, tirou uma moeda do bolso e começou a pular na frente
ao telefone na tentativa alcançá-lo. Ante a cena, pedi-lhe a moeda e desta vez
consegui fazer a ligação. Quando me voltei para agradecer-lhe a gentileza, era
tarde - ele havia desaparecido.
Uma hora depois, chegávamos à esquina de uma rua estreita do
antigo bairro judeu Santa Cruz, na cidade velha. Ao fundo se avistava um
luminoso que dizia: "Hotel Lyon". "É o tal", exclamei eu, satisfeito.
A “mobília charmosa” não passava de um armário escuro e carunchoso
mais duas camas de solteiro com colchões de diferentes formatos: um era tão
inclinado para um dos lados que a pessoa que se deitasse teria que se segurar
bem para não rolar para o chão. O outro era de conformação côncava, de modo que
uma pessoa deitada ficaria invisível aos olhos de quem estivesse na cama ao
lado.
- “É só por esta noite. E pense no banho quente que nos
espera." disse eu, dirigindo-me à janela do quarto.
Àquela hora já não havia movimento nas ruas, mas os quintais das
casas vizinhas despertavam a minha curiosidade. Entretido a olhar o casario,
pareceu-me ouvir lá do banheiro ela pronunciar a palavra ‘gelo’.
Fui até lá verificar pessoalmente a temperatura da água. E na
recepção nos disseram que havia água quente...
- "Ora, deve ser aquecimento central...demora um pouco, mas
depois que esquenta é uma beleza!”- contemporizei. Ela respondeu que por nada
no mundo entraria debaixo do chuveiro.
"...mas e os três dias sem banho?" continuei. Dizendo um
gracejo qualquer, ela encerrou o assunto.
"Eu vou", disse eu, enquanto observava a minha mão
direita que, após o teste da temperatura, adquirira uma coloração azulada.
Afinal, a água fria, aquelas camas, o hotel e o cansaço eram detalhes que para
mim pouco importavam, tantas eram as certezas que tínhamos e as coisas novas a
descobrir!
1999