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Aparência versus evidência


As coisas são o que parecem ser
ou são e não parecem ser,
não são e parecem ser
ou não são e nem parecem ser.

Não se deixar prender pelas imagens
é virtude do homem de saber
Ensinou-me o viver, que em verdade,
verdade alguma existe para crer



              
            
        

Um grande passo para a humanidade


     Escrever é quase sempre um processo trabalhoso. Das emoções inicialmente calcadas de modo primitivo no pensamento procuramos elaborar idéias para depois juntá-las em um arranjo, definitivo ou não.
     Se afinar nossa percepção interior nos deixa mais à vontade para dar testemunho do que vai à nossa volta, para escrever, contemos apenas com a companhia das nossas próprias entranhas. Do nosso mais estratégico posto de observação teremos então uma vista panorâmica que nos permitirá destilar em palavras a essência das impressões sentidas.
     Não importa qual o nosso estado de espírito, ao escrever é fundamental apenas que não haja ninguém a nos importunar. Como ocorre no exato instante em que redijo este pensamento, pela figura que acaba de adentrar o aposento: assemelha-se a uma mescla de micróbio oportunista com alguma outra entidade de menor importância do reino animal.
     Simplório e aparentemente inofensivo, é conhecido por fluir no meio social através da capacidade de bajulação aliada a um pendor quase ilimitado para proferir asneiras. Em contraponto, carrega consigo a propriedade de prejudicar o grupo a que virtualmente venha a se juntar, o que faz sem nenhum escrúpulo, desde que seja em benefício próprio.
     Costuma abordar o incauto com observações vazias sobre o cotidiano, prática que desempenha com singular desenvoltura. Outras vezes, penso que entusiasmado por eventuais sobras de benevolência subtraídas da vítima - que ele deve interpretar como genuíno interesse na conversação – ousa teorizar sobre temas um pouco mais profundos como, por exemplo, o apocalipse. Neste caso sua fisionomia assume uma expressão patética que não nos deixa alternativa que não o silêncio, epitáfio mais adequado para tais operações intelectuais. Entre os colegas é comumente lembrado pela alcunha de “o mouro”.
     Caberia agora a pergunta: nós, que atuamos na linha de frente da profissão – cada vez mais ofício do que arte – como devemos proceder frente a tal ameaça?
     Por certo que o homem, animal gregário, para sobreviver deve coexistir com a natureza e com os semelhantes que o cercam utilizando-se do mecanismo da troca. Não no sentido de “é dando que se recebe”, mas amparado na lei de Lavoisier (nada se perde, tudo se transforma) considerando-se que os recursos naturais são esgotáveis e que os resíduos devem ser reciclados e reaproveitados. A propósito, este conceito ecológico, se aplicado pelos detentores do capital tornaria muito melhor o mundo presente e para os que virão depois de nós.
     Voltando ao raciocínio anterior, o que pode ser aproveitado de um indivíduo que faz do exercício da dialética uma sessão de tortura para qualquer pessoa de espírito mediano? Certamente aqui não poderíamos falar em desperdício, pois obviamente tal termo não se aplica ao produto final do ato de obrar. Se nada do que ele diz pode ser aproveitado, então como pensar em reciclagem?
     Contudo, dentro do contexto ecológico a que nos referimos, nem tudo está perdido, há ainda uma salvação. É sabido que o esterco dos animais tem função de adubar a terra, favorecendo o crescimento vegetal. Daí, quem sabe em breve, do modo como evolui hoje a ciência, não haveria a possibilidade de aproveitar seus arroubos retóricos para fins mais nobres como a recuperação de áreas agrícolas degradadas?
     A considerar verdadeira a tese de Malthus de que a produção de alimento cresce em progressão aritmética ao passo que a população o faz em progressão geométrica, teríamos afinal a solução para a grande fome que se avizinha no planeta. Saques, revoluções, guerras e hecatombes seriam assim evitados.
     É pensando assim que consigo me conformar. Estar no trabalho tarde da noite, longe do convívio dos entes queridos e de mim mesmo, à mercê deste elemento, faz-me sentir como um sentenciado.
     Tolhido por questões de ética do direito básico de sugerir-lhe que se dirija imediatamente a certo lugar, ou mesmo de optar pela simples agressão física, entro em um devaneio em que vislumbro aqueles imensos desertos do norte da África, onde viveram seus antepassados. Refletidas nessa miragem, depois de um programa conjunto de irrigação artificial, regiões outrora áridas agora vicejam, prontas a se transformar em celeiros do mundo.
     Acho mesmo que já é horta, digo, já é hora de alguma empresa multinacional do ramo de alimentos transgênicos e pesticidas voltar os olhos para a sua retórica. Objetivo: a fabricação em massa de biodigestores capazes de transformar tais discursos em fertilizantes!
     O novo emprego traria a compensação financeira necessária para que ele largasse definitivamente os plantões e o saco de seus colegas. Por certo isto exigiria uma enorme quota de sacrifício de seus novos interlocutores.
     Mas, em compensação, que grande passo não daria a humanidade!










                                                              

Rosimeire e Armandinho

            Hoje, quando me é dada a oportunidade de relatar certos fatos, ainda que apenas no papel, não o faço por expurgo ou mero sentimentalismo. Reconheço, porém, um quê de nostalgia, mas sempre inspirado na consciência tranquila dos que falam sobre traumas antigos e já superados.

            Tudo começou na casa de minha avó, quando eu tinha uns quatro ou cinco anos de idade. Era um tempo em que ao abrir a janela da sala, poderia percorrer com os olhos um imenso quintal, margeado por roseiras, copos de leite, e outras tantas flores e árvores de alegre lembrança.

            Antes pôr do sol, munido de uma mangueira de água e de segundas intenções, eu me dirigia ao fundo do jardim, próximo ao parreiral. Para trás do cercado ficavam os meus brinquedos. Crista vermelha, os olhinhos piscando, aquele ar estúpido... não poderia haver seres mais prosaicos.  Mas como dizia um poeta que eu gosto, a beleza está em todas as coisas; se julgamos feias algumas, é apenas porque ainda não as brindamos com um segundo olhar.

            Gostava de escutar os estranhos sons que emitiam, que eu conseguia facilmente reproduzir e amplificar quando acionava o gatilho da mangueira. Que algazarra!

            Decorridos alguns anos, mil quilômetros viriam a me separar daquele paraíso. Eu sempre podia alcançá-lo, é verdade, mas apenas em devaneios. Contudo, apesar da distância, não perdi minha fascinação por aqueles bichos. A tal ponto que durante um almoço de domingo em família, baseado em sólidos princípios aviários, declarei com firmeza minha desaprovação ao prato que fora servido à mesa. À declaração seguiu-se um decreto: eu jamais comeria uma galinha dali por diante. 

            Não levaram muito a sério minha decisão. Um tanto desapontado, resolvi diversificar, desviando meus cuidados para entes mais próximos e sem grande risco de eu ver na panela, como o vira-latas que veio parar em casa, mas se rebelou depois de alguns dias, quando sem querer eu pisei no seu rabo. E o gato, que fugiu na noite em que eu o botei debaixo da torneira do tanque.

            O tempo passou e fui deixando para trás as minhas aspirações de ter um animal de estimação. Depois percebi que, embora aparentemente olvidadas, elas sobreviviam em algum lugar esquecido do meu pensamento. E um dia, finalmente, veio a chance de realizar aquele sonho. Quando ocorreu, foi com a imprevisibilidade e a espontaneidade que em geral precedem os grandes acontecimentos. Estávamos no mercado central quando um som familiar chamou minha atenção. Paramos eu e o Zé Grandão, acho que tomados pela mesma ideia. E, encantados, como se atendêssemos a um chamado da infância, entramos naquela avícola. Nessas horas eu sempre perco um pouco do senso crítico, tal é o grau do deslumbramento que me acomete; sou movido por um imediatismo que me inclina concordar com tudo o que me dizem, sem refletir. Conhecedor deste traço respirei fundo e agradeci a oferta do balconista, ao mesmo tempo em que procurava me controlar. Após um breve reconhecimento pelos engradados, o que me permitiu organizar melhor as ideias, decidi contemplar meu perfil idealista. Pensava então: tudo aquilo que acompanhamos desde tenra idade tem melhores condições de um crescimento feliz e saudável, já que podemos intervir quando necessário. Assim, nada melhor que adotar um recém-nascido, ou melhor, dois, pois poderiam fazer companhia ao outro. Para evitar confusões, optamos por um casal: uma branquinha e um pretinho. Pareciam bem saudáveis e simpáticos e achei que por mim estava bem. No caminho discutiríamos como chamá-los.

            Eu estava eufórico e, confesso, um pouco emocionado. Ressoavam na minha mente melodia e letra do Moreira da Silva, “Morangueira contra 007” com ênfase na frase “Comprei um sítio e ia criar galinhas”. O Zé Grandão, por sua vez, via ali o começo de uma grande empreitada e quem sabe, um lance do destino que lhe permitiria mudar radicalmente de vida.        

            O nome dela surgiu espontaneamente. Branquinha e meio ”Patricinha”, tinha mesmo cara de Rosimeire. Quanto ao preto, as opiniões se dividiram: Décio e Caio foram as primeiras sugestões, mas não gostamos da conotação que estes nomes provocavam. Não seria de bom tom para um pinto. No caminho para casa, pensaríamos melhor.

            Já era noite quando chegamos e eu, um pouco apreensivo, pensava: seriam eles bem recebidos? Fizemos as apresentações formais:

            "Amigos, estes são a Rosimeire e o...Armando Pinto!" disse-lhes eu, apontando para o nosso amiguinho, que acabava de ser batizado naquele instante. A forma amistosa com que foram tratados pelos colegas deixou-me mais descansado, pois não ignorava os danos que uma rejeição precoce pode causar ao intelecto infantil. Não gostaria que carregassem traumas para a vida adulta.

            Estando em pleno mês de junho de um tempo em que pelo clima ainda era possível identificar as estações do ano, queríamos acomodá-los de modo que se sentissem quentinhos e confortáveis. O “Bicho” sugeriu colocá-los no forno - e acho que não estava brincando - mas preferimos deixá-los em uma caixa de papelão das de supermercado.     

            As primeiras noites, bem sabíamos, seriam mais difíceis. A mudança de ambiente era contornada na medida do possível, com histórias para dormir. De dia, ficariam aos cuidados da Elena.

            Em nossa inexperiência, pretendíamos criá-los um pouco nos moldes do método Piagetiano, ou seja: nada de fórmulas prontas. À medida que crescessem seriam soltos devagar, para que aprendessem a viver por si próprios. Queríamos dar a eles condições de arbitrar livremente sobre a sua existência através da consciência, do conhecimento e do exercício da verdade, como na concepção de Sartre: se cada indivíduo for consciente da sua responsabilidade, o conjunto dos indivíduos fará um galinheiro, digo, uma sociedade saudável. Formar-se-iam então indivíduos auto suficientes, já que a responsabilidade do outro estaria implícita nessas relações. Tenho uma amiga que ao dar a esta teoria existencialista um sentido psicanalítico, diz que cada um é responsável por si e nunca por aquele que cativa. Sentimental que sou, ainda prefiro o romantismo do Exupéry. 

            Ao voltarmos da escola nos dias que se seguiram, caíamos em cima da Elena com as perguntas de praxe:

            “Então, Elena, como passou a Rosimeire? E o Armandinho? Comeu? Brincou? Dormiu? Cagou?“

            Despreocupados, dispunham de atenção, espaço e luz suficientes para uma meninice feliz.        Acompanhar este processo, além de um prazer, para mim foi uma experiência enriquecedora. E olhe que na época não havia a profusão de revistas que há hoje em dia – essas publicações instrutivas que nos ensinam de tudo - ao lê-las, temos oportunidade de reaprender e rever tantos conceitos...  até mesmo aqueles que versam sobre as coisas mais fisiológicas, que já nascemos sabendo fazer. Tivemos, pois, que nos virar por conta própria. Foi realmente um período de aprendizado em conjunto.

           Era interessante observar as diferenças entre os dois.  Não estou me referindo à cor, obviamente, mas ao gênio. Apesar de serem criados de maneira igual, Rosimeire, sempre expansiva, falava pelos cotovelos; já o Armando era mais quieto, introspectivo. Pareciam se completar um ao outro, atributo que segundo alguns teóricos bem diferentes do anteriormente citado, ajuda a formar pares felizes. Mas minha grande preocupação era a adolescência, nem tanto pelo trabalho e sim pelas tensões que estariam por vir.

            Infelizmente, mal chegaríamos a vê-los apresentar as mudanças corporais e psicológicas características dessa idade. O que se seguiu, foi uma perfeita negação da tal teoria sartreana. 

            Eis que em função das férias escolares, confiamos nossos pré-adolescentes aos cuidados do “Bicho” e da Elena; esta, porque havia se comprometido a vir uma vez na semana para cuidar da casa e aquele, porque já não frequentava as aulas, e volta e meia estava por lá, ciscando. Mas - e aqui reconheço alguma culpa – deixamo-los nas mãos de pessoas que não estavam maduras para enxergar a importância da responsabilidade individual acerca da do bem-estar comum e, portanto, não preparadas para recebê-los.

            Ao retornar às aulas, dando pela falta dos dois e movido por um mau pressentimento fui ter com Elena que, evasiva, revelou que Rosimeire havia sido comida pelo “Bicho”. Este, com quem conseguimos falar só algumas semanas mais tarde, ao ser interpelado, não deu maiores explicações. Comera e pronto.   

            Armandinho falecera em circunstâncias obscuras. O atestado de óbito revelou intoxicação alimentar    como a causa básica, porém chamou-nos a atenção o item causa mortis associada, em que se lia: desnutrição. Ironicamente, na autópsia, foram encontrados em seu papo um elástico e um passe de ônibus. Isso poderia dizer que ele não tinha morrido de fome, mas, movido pelo desespero que ela provoca, ingerira qualquer coisa que encontrara sem verificar a procedência.  Ou quem sabe, dando por falta de sua branquinha, teria tentado propositadamente contra a própria vida?

            Às vezes penso no que teria ido em sua alma naquele momento, e até no que aconteceria se os eventos tivessem se encaminhado de modo diferente. Mas não quero ir além, prefiro ficar aqui, com estas observações superficiais. E pensando bem, que importância tem isso agora? 

Post scriptum

            As pessoas dão a esta história muitas interpretações. Cá entre nós, mesmo tendo lançado uma visão poética sobre o desfecho, quero acreditar que Armandinho tenha morrido de inanição por falta de comida, embora não possa descartar a outra hipótese, que para mim seria mais confortável. Contudo, não desejo teorizar sobre assunto tão delicado.

            Alguns dizem que a virtual atitude de Armandinho não teria sido típica de um pinto, e que fugiria mesmo à mencionada proposta existencialista (que hoje vejo como uma bobagem).  Daí, não tendo uma identidade própria de si mesmo e privado da sua Rosimeire, ele teria optado pela solução extrema ao invés de reconstruir sua vida. Eu penso que tais atos em geral não estão vinculados especificamente ao sexo masculino ou feminino (e ele não era um gay). E, convenhamos, tão novinhos, eles eram apenas uma promessa. Podemos, por acaso, julgar as atitudes de Romeu e Julieta?

            Sei que não sou o mais indicado para interpretar meus escritos, mas talvez a imagem mais eloquente que nos aponta o final, seja a do estrago que a falta de atenção e de cuidados pode causar. Então, mais uma vez, não posso deixar de dar razão ao Exupéry: é o tempo que dedicamos à nossa rosa que a faz ser tão importante

Março/2000