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O Orgulho da Vovó nos tempos do choro

Tendo perdido de vista o menino que me serviu de guia em Minha vinda para Santana, tomarei um atalho no tempo que me conduz ao final de 1974. 

Naquele ano, o Lins - amigo a quem eu conhecera ao ingressar no CEDOM - avisara sobre um encontro com ex-colegas do colégio e amigos. O objetivo era reunir pessoas com vistas a formar um grupo musical de choro.  

Eu tinha um cavaquinho Giannini que meses antes viera às minhas mãos, meio gasto e depenado, trazido por um colega, o “Mac”. No pequeno instrumento – e aquele era mesmo diminuto – motivado por curiosidade eu começara a treinar alguns acordes. 

Era um tempo em que a internet não existia. Podíamos até conversar durante e após o jantar e nos dedicar a atividades diletantes, como arranhar as cordas de um violão tendo ao fundo um coro afinadíssimo a entoar canções como “Eu e a brisa” (Johnny Alf), Feitiço da Vila (Noel Rosa), e como contrapeso O caveira (Martinho da Vila) e A noite mais linda do mundo (Odair José). 

Na casa do Carlão (Haramura), no Jardim São Paulo, estavam reunidos, até onde me lembro, Daniel (bandolim), Sergio Faria e Fabinho (violões) - já tocando alguns choros - que juntamente com Carlão (pandeiro), Lins e Emygdio ao afoxé e eu (com aquele arremedo de cavaquinho) comporiam o grupo. Era concebido ali o que viria a ser conhecido como o Orgulho da Vovó, nome de batismo dado por Sergio Xavier, irmão do Fabinho. 

A lembrança das reuniões seguintes foi obscurecida pela morte do Fabinho ocorrida em um acidente de carro durante as férias de janeiro de 1975. O pouco que vi daquele menino afável de 17 anos, recém aprovado no vestibular do Mackenzie para engenharia civil, foi o dom para a música, que lhe permitia interpretar tão bem, entre outras, as canções de Sá, Rodrix e Guarabira em seu violão de tampo verde. 

Retomo a memória a partir de março, quando passamos a nos reunir todos os sábados às 14h na casa do Daniel, na Rua Augusto Tolle. Como parte do ritual daquelas tardes fazíamos uma breve incursão ao Bar do Luiz Fernandes, situado na mesma rua, para calibrar as engrenagens, operação que seria completada ao voltarmos para o ensaio. Mais tarde seria servido um lanche, este de teor apenas nutritivo, preparado pela mãe do Daniel. 

Eu começava  a conhecer o mundo melódico, harmônico e rítmico do choro, que a partir de então seria acessível ao ouvir um LP ou fita cassete ou assistir às apresentações dos grandes intérpretes. Conhecer as composições clássicas de Jacob do bandolim e Waldyr Azevedo, e ouvir os sons do Época de Ouro, do Conjunto Atlântico e do Regional do Evandro foi para mim uma epifania musical. 

As primeiras músicas – Flor Amorosa, André de sapato novo, Flor do Abacate, Serra da Boa Esperança, No Rancho Fundo e Noites Cariocas entre outras, comporiam um repertório incipiente que nos permitiu aparecer no programa Gente Jovem, da TV Cultura. As tratativas prévias foram feitas pelo Emygdio, que nos primórdios do conjunto era o titular do afoxé. Após entrevista com o Eduardo Moreira, para quem interpretamos nossa pièce de résistance Flor Amorosa, fomos aceitos para executar três músicas. O programa Gente Jovem, no qual músicos novos tinham a oportunidade de mostrar sua arte, era visto à noite em um determinado dia útil da semana e reprisado aos domingos. A apresentação era de Fausto Canova, a quem veio depois se juntar Ângela Rodrigues Alves. Acho que nos saímos bem, pois nos convidaram para outras apresentações, em uma das quais fizemos o programa inteiro. 

Nosso repertório crescia e o conjunto ganhava novos integrantes – Gilberto Labonia (6 cordas), Ozório (6 cordas), Humberto (cavaco), Sergio Lopes (reco-reco) e mais tarde Pituca (flauta), Chiquinho e Thales (acordeon) se juntariam a nós em participações menos frequentes. Aumentavam os convites para apresentações em clubes, festas e outros eventos. Acho que o período 1977-1978 foi o mais florescente nesse aspecto e narrarei aqui alguns, particularmente insólitos.  

Fôramos convidados pelo Eduardo Moreira – que aparentemente se tornara nosso fã – para toca no Tênis Clube de Campos de Jordão, no qual ele exercia um cargo diretivo. A apresentação ocorreria em um sábado à noite. 

O Sergio Faria fora na frente e nós seguiríamos depois, na Chevrolet Veraneio do Humberto. A conversa estava animada durante a subida da Serra da Mantiqueira e animação aumentou quando à entrada da cidade avistamos uma faixa de boas-vindas anunciando a apresentação do Orgulho da Vovó naquela noite. No Tênis Clube guardamos nossos instrumentos e saímos para jantar na cidade, não sem antes uma breve pausa no bar para um “rabo de galo”. No restaurante não fizemos questão de economizar, cientes de que a organização assumiria as despesas com alimentação e estadia. 

De volta ao local de apresentação, um salão com cadeiras especialmente dispostas para o evento, começamos a afinar nossos instrumentos à espera de que chegassem os espectadores. Mas, estranhamente estes se resumiam a meia dúzia de pessoas à última hora recrutadas Eduardo Moreira (parece que estavam na sala ao lado e tiveram que interromper seu carteado). Na esperança de que os retardatários aparecessem, executamos algumas peças – afinal, fôramos chamados para isso – mas ninguém mais aparecia. A certa altura, alguém disse que naquela noite aconteceria a abertura do Festival de Inverno de Campos de Jordão. Claro, esse era um fator que poderia explicar a minguada afluência de pessoas ali. Então, em meio ao nosso desencanto, o Eduardo Moreira surgiu para resolver a situação:

- Convido-os para virem à minha casa, onde vocês poderão tocar para nós – minha mulher e eu. 

Com a frustração amenizada, seguimos nosso anfitrião até seu agradável chalé, onde conhecemos Marília Moreira (que em 1960 era apresentadora do programa infantil Pullman Junior) e mais alguém que não me lembro. O clima era receptivo e havia uma mesa farta de comes e bebes - provavelmente preparada para mais tarde, quando voltássemos da apresentação. Inspirados pela simpatia dos Moreira, mostramos nossa arte com entusiasmo e acho que agradamos. Foram horas alegres.

Ao fim da noite nos conduziram até as instalações do clube, onde ficaríamos alojados. Os quartos eram equipados com beliches, o que fez aumentar nosso alvoroço. Acho que sequer dormimos, impelidos pela conversa e pelos trejeitos verbais do Ozório, que devia estar ligeiramente bêbado. 

Regressamos a SP com o pensamento de que se não pudemos cumprir o objetivo primordial, pelo menos nos divertimos e ainda ganhamos honorários, coisa que o Ozório negociou com a ótica de um profissional – “afinal, nós temos um repertório pronto”.

No mesmo ano, participamos de um evento em que também quase não chegaríamos a tocar. Todavia, o desfecho não seria feliz como o de Campos do Jordão.

Eu recebera em casa a visita de um colega e sua noiva que iria se formar no curso de Fisioterapia da USP, em dezembro. Membro da comissão de formatura, ela viera convidar o conjunto para abrilhantar a festa – tocaríamos para os convivas e nos serviríamos do bufê. Não sei dizer qual teria sido o mais decepcionante entre os convescotes a que fomos chamados para tocar: a tal festa de formatura ou o sarau em um salão restaurante em que nossas músicas eram abafadas por sons de vozes, gargalhadas, pratos, talheres e arrastar de cadeiras. Para começar, no grande sobrado em que se desenrolava a festa não havia um palco ou sequer um lugar adequado para uma função musical.  Em contrapartida sobrava gente empetecada e falante. Foi naquele ambiente que, sentados em cadeiras dispostas de forma improvisada e em um espaço intermediário, começamos a tocar. Eu mentiria se dissesse que ninguém prestou atenção à nossa performance. Houve sim, uma alma piedosa – um rapaz se aproximou ao término de um número e lamentou, com certa indignação, o fato de as pessoas não darem valor à nossa música. Concordamos e então ele sugeriu, com ar resoluto e quase entusiasmado: 

- ‘Vamos tocar lá fora, na calçada?’ 

O singular convite representou um sinal para que decidíssemos nos retirar do festejo.  

Houve, em contraponto, locais em que nos foi prazeroso tocar. Um deles foi em um sábado, em 1977, na Praça da Luz. Na manhã daquele dia tínhamos ido a São Caetano do Sul tocar no centro acadêmico da Escola de Engenharia. De volta a São Paulo, almoçamos em um restaurante da Av. Tiradentes e nos dirigimos até o coreto da praça. A experiência de tocar em um lugar público aberto é diferente da que se tem ao tocar em estúdios ou em festas; fica-se mais à vontade. Entusiasmou-nos ver pessoas simples, alegres a dançar ao som dos chorinhos que executávamos. O único senão foi a verborragia do locutor, que ocupava mais tempo em sua falação do que os músicos em suas interpretações. 

Uma outra passagem especialmente marcante se deu nos estúdios da TV Cultura. Ao final de uma das gravações que fizemos no Gente Jovem, o Fernando Faro, produtor de Ensaio e do Choro das Sextas, em que tocava o Conjunto Atlântico, em conversa com Eduardo Moreira convidou-nos para tocar um número no programa que seria gravado naquela noite. O convite representou para nós um duplo privilégio –aparecer em um programa tradicional da televisão e ao mesmo tempo ver e ouvir de perto o aclamado Conjunto Atlântico, descoberto por Júlio Lerner e José Ramos Tinhorão.

Como a gravação começaria por volta das 20h teríamos tempo para comer alguma coisa e rumamos para o antigo Bar do Alemão, na Avenida Antarctica. Durante um jantar descontraído, deliberamos por unanimidade o número a ser apresentado. 

De volta ao estúdio vimos chegar os músicos Isaías, Israel, Antônio D’auria, Seu Jayme, Miro e outros cujo nome não me lembro. A gravação começou e à medida que eu ouvia, empolgado, as vibrantes interpretações daqueles veteranos do choro, crescia a expectativa de quando seríamos chamados para tocar. A certa altura, o Júlio Lerner anunciou o nome do conjunto e fez as apresentações individuais, mencionando o instrumento, o curso e a instituição em que estudávamos. E em uma atmosfera que a mim afigurava uma outra dimensão passamos a servir o nosso tradicional prato principal - Flor Amorosa. Tocar naquelas circunstâncias era diferente de tocar em um ensaio despreocupado. O som da música parecia vir de longe e em vez da interação própria de um ensaio, sobressaiam-se as percepções do ritmo e desenho dos dedos nas cordas do instrumento. 

A impressão de termos cumprido a tarefa a contento se fez verdade quando, ao final do programa, o exímio bandolinista Isaías de Almeida interessou-se por um certo floreio executado com maestria pelo Daniel...

Tocávamos por prazer, porque gostávamos de choro, e porque havia sempre novos choros a descobrir. Sabíamos que a música era simplesmente uma atividade amadora, mas isso não nos impedia de aprimorar a técnica e almejar por instrumentos de melhor qualidade. Casos do cavaquinho e do bandolim adquiridos na Casa Bevilacqua e do violão de 7 cordas do Sergio Faria, todos fabricados por Estevam Soros.    

Nossos cenários de apresentação iam desde aniversários familiares, reuniões em casas de amantes de música e de choro, sítios, até apresentações em bares, como o café Paris e o Bar do Costa, em Santana (onde tocávamos a troco de pinga). Sem falar na noite em que tocamos em uma festa de maconheiros. Alguns foram memoráveis, como o da excursão a um sítio em Pindamonhangaba - intermediada pelo Carlão - pertencente à família do ex-ministro Fabio Yassuda. Foi uma noite de fartura – de gente simpática, chorinho e pizza. 

No Café Paris, em que fomos chamados a tocar em duas ou três ocasiões, recebíamos um couvert artístico, suficiente apenas para um bom jantar. Tocávamos uma espécie de mezanino - equipado com uma pequena livraria - que às vezes dividíamos com outros músicos. Consta do nosso anedotário que Daniel teria ouvido do compositor Paulo Vanzolini – que certa vez se encontrava por lá - uma observação jocosa acerca de nossa arte. Mas o que à primeira vista passaria por pouco lisonjeiro, pode ser encarado como um elogio - é sabido o pouco apreço que ele tinha por 'Ronda' - sua composição mais conhecida, e que não gostava de bossa nova ou de músicas com excesso de emoção. 

Em compensação - não me lembro se naquela ou em outra noite - foi muito aplaudido o nosso cantor itinerante “1001” - assim chamado em alusão à sua arcada dentária superior – que ofereceu ao público pungentes interpretações de Perfidia (Alberto Dominguez, 1939) e Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues, 1939). Ao lado do violonista Chiquinho, “1001” costumava nos brindar com aparições esporádicas aos ensaios. É preciso dizer que ao interpretar Saudades do Passado (David Nasser, Gomes Cardim e Francisco Alves), “1001” transmitia mais sentimento do que este último em sua gravação original de 1951. 

Na segunda metade dos anos 1970 vivemos o renascimento e a efervescência do choro que, de esquecido, passou a ser valorizado como música brasileira de raiz. Os nomes consagrados de Waldir Azevedo, Regional do Canhoto, Época de Ouro, Luperce Miranda, Altamiro Carrilho e Ademilde Fonseca voltavam a ser comentados. Ganhavam evidência Arthur Moreira Lima, Evandro e seu Regional, Raul de Barros, Abel Ferreira, Carlos Poyares... clubes de choro eram formados e despontava a gravadora Discos Marcus Pereira. Entre os que já nos tinham deixado eram celebrados Pixinguinha, Garoto, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e tantos outros.

Nossa última performance pública ocorreu em uma noite de março de 1979 no Complexo do Anhembi, por ocasião da festa de formatura da Escola de Engenharia Mauá. Encaramos aquela apresentação como mais um compromisso – que ensejou uma animada reunião noturna nas proximidades do evento, em uma sexta-feira, na casa do Lins. 

Entrar em cena no grande auditório do Anhembi após ser chamado ao palco pelo renomado mestre de cerimônias Sergio Chapelin não é coisa que acontece todos os dias. Mas para nós, foi como tocar no sofá de casa. Nosso maquinário funcionava de modo intuitivo e harmônico, resultado da experiência de anos de atividade. 

Ainda ensaiaríamos por mais um tempo, porém a força motriz que nos mantinha ativos e entusiasmados claramente diminuíra. Ozório, nosso músico mais ilustrado e que às vezes atuava como arranjador, havia alguns meses chegava tarde aos ensaios e ainda trazia consigo uma clarineta, instrumento no qual parecia estar mais interessado. Sergio Faria estava na iminência de se mudar para os Estados Unidos. A maior parte dos integrantes havia concluído seus cursos de graduação e estava diante de novas perspectivas, o que acabou diminuindo o tempo livre e a motivação para ensaiar.

Assim como a beleza do sol e da mulher, que alcança o auge nos momentos próximos ao ocaso, o conjunto se desfez depois de um período de grande atividade e quando estava em sua melhor forma. 

Hoje penso que poderíamos ter ido mais longe se houvesse espaço na agenda para tanto. Contudo, sendo jovens e idealistas, era nítido para nós que apesar da música ser onipresente em nossas vidas, a prioridade era a formação e o desenvolvimento profissional de cada um em suas respectivas áreas. Ainda assim, o conjunto cumpriu seu papel e ganhou um lugar, ainda que modesto, na história do choro em São Paulo, registrado na tese de mestrado “O Clube do Choro de São Paulo: Arquivo e Memória da música popular na década de 1970”, na UNESP. 

Em 2012, decorridos 32 anos do fim do Orgulho da Vovó, um movimento impulsionado por ex-colegas, entre os quais Ozório e Pituca reuniria de volta alguns dos antigos integrantes – Ozório, Daniel, Humberto e Heitor. O feliz reencontro aconteceu no mesmo lugar de sempre – a antiga casa do Daniel, que depois viria a sediar o restaurante de seu primo. 

Foi preciso motivação para reavivar a memória após mais de três décadas de inatividade, porém a vontade e o trabalho prevaleceram e conseguimos formar um repertório com nossas músicas de então e outras, inéditas. Ao novo grupo, Ozório deu o nome de À beira do choro. 

Mas essa seria outra história.

julho 2024




                                                                                                                                                                 

                                              

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O Orgulho da Vovó em sua última apresentação pública, no auditório do Complexo do Anhembi. Da esquerda para a direita: Humberto, Heitor, Ozório, Sergio Faria e Daniel; atrás, na percussão, Lins e Jaiminho (substituindo o Carlão).  

 


Reencontro dos remanescentes do Orgulho da Vovó em 2012, na antiga residência do Daniel, que depois sediaria o restaurante de seu primo. Esta seria a última vez em que Pituca (flauta) tocaria com o grupo.  


O À Beira do Choro  em 2013. Da esquerda para a direita: Emílio (cello), Humberto (violão de 7 cordas), 
Daniel (bandolim e viola de 5 cordas) Ozório (violão de 6 cordas) e Heitor (cavaquinho solo e centro)