Os colégios onde estudamos têm lugar
perene em nossa memória, assim com os professores. Alguns eram notáveis por
sua competência, outros porque eram chatos. Mas havia aqueles de quem
gostávamos. Dona Maria do Carmo Rocha, à época com 54 anos, era uma educadora nata que
nos ensinou, ao lado da matéria curricular, noções básicas de bom senso e relacionamento humano, tudo de forma
paciente, amistosa e posso dizer, terna. Até para dar bronca ela tinha tato.
Certa vez precisou faltar, sendo substituída por uma jovem inexperiente e que
não sabia se impor, o que nós, meninos, interpretamos como um sinal verde para
cair na bagunça. Fizemos uma bela algazarra. No dia seguinte, depois de chamar
nossa atenção com firmeza, dona Maria do Carmo exortou-nos a tomar a água com
que as meninas lavavam os pés à noite – como uma espécie de poção medicinal que
faria com que nos comportássemos melhor. Dessa forma, amenizando a repreensão com bom
humor ela passou-nos sua mensagem. Sob sua regência aprendemos a cantar hinos,
entre os quais o Hino à Bandeira, o mais belo de todos. Aquela senhora, com quem tive aulas no terceiro ano primário, é uma das minhas recordações carinhosas da
infância.
Um acontecimento fatídico em agosto
de 1961 - a renúncia do presidente da república e o que ocorreu a seguir nos
trouxe preocupação. Minha mãe ouvindo as notícias no rádio, preocupada com o
risco que corriam sua mãe e os irmãos, que moravam bem perto do palácio do
governo do Rio Grande do Sul, onde se entrincheirara o governador.
Outro evento, esse com desfecho
feliz, foi a copa do mundo de 1962. O jogo do Brasil contra a Espanha foi o mais dramático. Na rua acompanhávamos as partidas por
autofalantes colocados nos postes. Na esquina do colégio ouvi pela voz do
locutor que a Espanha estava vencendo por um a zero e já corria o segundo
tempo. Voltei depressa para casa, imaginando um prognóstico sombrio. Mas ao
chegar, minha mãe, que estava passando roupas, disse que o Brasil havia
empatado. Dali a pouco o jogo viraria com o gol de Amarildo completando uma
grande jogada de Mané Garrincha.
Nosso pequeno quintal não era tão
pequeno que nos impedisse de jogar uma módica bola de borracha. Com o que
ouvíamos das transmissões esportivas (narração de Raul Tabajara e comentários
de Paulo Planet Buarque, na TV Record) e com o álbum de figurinhas da Copa
aprendemos os nomes dos jogadores. Foram os titulares Zito, Coutinho, Gilmar,
Mauro (e não Pelé, que pensávamos ser do São Paulo) os craques da seleção que
nos motivaram a torcer para o Santos Futebol Clube - que depois soubemos ser o
melhor time do país.
No Parque de Aeronáutica
Em uma tarde de fins de julho de 1962 um acontecimento previsto transformaria bastante nossa rotina – nova mudança, desta vez para o
Parque de Aeronáutica. Depois de anos de espera, meu pai afinal conseguira vaga
em um apartamento de dois quartos e mais espaçoso. Na área externa o espaço
para brincar era de amplidão inimaginável comparado ao que dispúnhamos até
então. Não me lembro dos detalhes, mas quando ele chegou, nossos pertences, que
não eram muitos, estavam prontos para serem transportados. À noite, já
relativamente instalados, jantamos no refeitório do cassino dos oficiais. De
volta ao apartamento assistimos na TV Record ao desenho Manda Chuva.
Eu contava os dias que nos restavam
de férias. Eram poucos, mas poderia fazer muitas coisas, entre as quais jogar
futebol no campo ou na quadra, e empinar pipa. Na manhã seguinte à mudança, descemos para
o amplo gramado detrás dos prédios de apartamentos para empinar uma “raia” que
eu construíra e trouxera comigo. Entusiasmado com o céu livre de postes e fios
de alta tensão, dei linha para a pipa e a vi subir tão alto como nunca. Isso me
deu a emoção de transpor limites, mas em seguida fiquei um pouco temeroso, pois
notei que lá em cima ela reagia menos ao meu comando. Chegaria o instante em
que o vento me impediria de controlá-la? Não demorou e vieram um e outro menino. Um deles mostrou-se simpático e de modo
diplomático comentou sobre a altitude alcançada pelo meu artefato; nos
apresentamos e antes de sair desejou-me boas-vindas. Dali a pouco comecei a
enrolar a linha no carretel; a pipa veio baixando devagar, e com
tranquilidade consegui trazê-la intacta para mim. Eu estava feliz e animado com
aquele começo.
Na época em que morávamos
provisoriamente no campo de Marte eu ganhara de minha tia Esther uma bicicleta Mercswiss,
cor de vinho e aro 18. Pouco pude usá-la. Com a mudança para a rua Pedro Doll
ela permaneceu no guarda volumes da casa. Passados dois anos e meio, eu
crescera para o tamanho da bicicleta, mas isso não tinha importância. Agora
limpa e com a corrente lubrificada era só aprender a andar com desembaraço,
coisa que acabou por acontecer espontaneamente.
Em uma tardinha eu estava no gramado
junto ao escorregador, quando um menino se aproximou de forma amistosa, em sua
bicicleta. Após as apresentações disse estar morando ali havia alguns meses. Ao
saber da minha mudança recente ele sugeriu que saíssemos para percorrer as
imediações. Assenti e com nossas bicicletas seguimos pedalando pela extensão
das árvores, hangares e aviões, a subir e descer obstáculos. Era bom ter o
espaço livre à frente. Uma sensação quase igual à que eu experimentara aos 3 ou
4 anos de idade, em uma festa de Natal na Base Aérea de Canoas quando, a bordo
de um velocípede, resolvi correr em direção à pista (alertados por alguém, meus
pais vieram me buscar). De volta do percurso ainda trocamos ideias
sobre o que cada um queria ser na vida e ao nos despedirmos, agradeceu pela
companhia. Achei-o bastante determinado para alguém com dez anos de idade.
Aquele passeio representou para mim um bom presságio.
Eu acabara de entrar em um mundo
pródigo de lugares para brincar e conhecer. E que seria meu lar pelos próximos
anos, com seus atributos bons e ruins, conforme eu saberia ao longo do tempo.
Encerro aqui esta etapa, narrada em ordem cronológica não muito rigorosa, que cumpri em parceria com o menino que me guia quando escrevo sobre o passado distante. Se história continuará ou não, irá depender da disposição dele.
O Parque de Aeronáutica de São Paulo (hoje PAMA SP) em foto atual




