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Cena à mesa de jantar
A toalha de mesa xadrez vermelho e branco já é um convite para que nos sentemos à mesa. Uma a uma, chegam as iguarias. Salada de tomate e repolho, feijão...
O que será que tem de mistura? Detrás da montanha branca que se formou no prato do companheiro à minha frente, vejo sair uma mão avantajada que se esmera em esvaziar o potinho de tempero. Resmungos...
- "Toninha, traz a carne!" Ela não responde.
- "Carne, pra que carne"? soa uma voz esganiçada. Levanto os olhos, e me deparo com a figura que acaba de adentrar a sala. Trajando apenas cueca branca, leva à mão direita um copo de café e um Hollywood. A esquerda ocupa-se em cofiar o saco...
- Porra, não tem carne nesta casa?” insisto. Ao que ele profere, com a autoridade de um professor titular:
- "Você tem é desinformação dietética!”
A Toninha não veio
Passo os olhos pelo granito carcomido do balcão da cozinha. Na panela, hifas e leveduras deitam um tapete esverdeado sobre o que outrora foi um resto de caldo de feijão. Brigando por espaço, xícaras meladas, uma garrafa térmica vazia e pratos de sopa empilhados.
A pia...O que estaria por debaixo daquele líquido ocre que chega quase até a borda? Com um puxão firme na porta do velho armário de aço, presencio minúsculas tropas de assalto a investir contra um indefeso pote de açúcar. Mais ao fundo, esquecido, um copo de vidro, desses de massa de tomate. É você mesmo que eu quero. Viro a torneira do filtro pra lá, pra cá, inclino um pouco... Beleza! Enquanto mato a sede, chega aos meus ouvidos uma voz modorrenta, vinda lá do quarto:
“Esta casa está ficando do jeito que eu gosto...! ”
Götterdämmerung
Götterdämmerung (Der Ring des Nibelungen) - Richard Wagner
Sir Georg Solti conducts the Wiener Philharmoniker.
Réquiem
Ah,
os velhos, seus conceitos e os pontos de vista que nos passam! Conhecer sua sabedoria é como estar à sombra de uma
velha árvore.
Eles vem de um tempo em que o mundo era mais simples e, embora o progresso lhes
tenha facilitado a vida, tornou algumas coisas mais complicadas.
Como morrer, por exemplo. Em geral, velhos morriam em casa, cercados da atenção
da família e amigos. É o que nos contam as pinturas antigas. Hoje, o moribundo é
escamoteado de seu ambiente familiar para morrer internado em uma UTI, onde por
vezes, até aos familiares é vedado o contato, o direito de permanecer com o seu
ente querido. Às crianças se diz que o avô viajou para longe ou foi para o céu.
Em uma sociedade em que a mídia usa a imagem da juventude para vender produtos,
a morte é o fracasso total, pois afeta o binômio da produção e do consumo.
Temos então uma sociedade que rejeita a morte, mas que, por outro lado faz dela
um negócio. Haja vista os planos de jazigo, que oferecem desde salas de velório
até flores, bar e restaurantes. Recentemente um amigo me contou que, à saída de
um velório, ao notar uma mesa forrada de doces finamente embalados, perguntou à
funcionária o que era aquilo. Ela respondeu com naturalidade que eram “bem
velados” (uma analogia com “bem casados”).
Não me agrada falar sobre embelezamento de cadáveres por meio de maquiagem e
cremes que compõem o exercício das atividades funerárias. Porém, quis o acaso
que eu interviesse para consertar um serviço dessa natureza.
O que narrarei a seguir passou-se há muito tempo. Estava eu no serviço
funerário municipal, onde era velado um senhor cuja presença, em vida,
testemunhara minha aproximação com sua filha, uma moça a quem chamarei Osita.*
Era noite e estávamos apenas ela e eu no local. Os conscienciosos agentes já
haviam executado o trabalho a que me referi - mal feito – pelo qual foram pagos
- e tinham sumido.
Com o passar das horas, o calor se encarregou de fazer minar fluidos pelo nariz
do defunto. Percebi que o caso requeria uma ação rápida, pois já era madrugada
e os familiares - que não eram poucos - chegariam de manhãzinha para integrar o
cortejo fúnebre até o crematório. Deixei então Osita ao lado do pai e
fui atrás de uma farmácia de plantão, onde adquiri um kit de curativos. Munido
de pinça e gazes, consegui dar um jeito na situação. Precisei repetir a
operação algumas vezes, mas afinal fui feliz em meu intento de não permitir que
a última visão do ente querido causasse má impressão à família.
Nunca conversara com o falecido, pois nas ocasiões em que o visitei estava na
UTI, sedado ou inconsciente. Por mais de uma vez havia apertado suas
mãos, tendo então observado que os dedos já estavam em posição deformada devido
à sequela do acidente vascular cerebral que sofrera.
Tampouco soube ele quem eu era, embora lhe fosse apresentado por sua filha na
primeira visita que lhe fiz durante sua derradeira estadia no hospital.
- Papá siempre fue testarudo, disse-me ela, ao que eu respondi:
- “E há algum espanhol que não seja?” Ela achou graça e disse a ele elevando o
volume da voz:
- Mira, papá, ese es mi novio!
Uma ou outra vez surpreendemo-lo abrindo os olhos, debilmente. Talvez
entendesse alguma coisa do que dizíamos. Às vezes seu rosto deixava escapar uma
expressão de ironia desgastada, talvez por saber que havia perdido a
independência. Teria ele mesmo consciência desse fato?
- Él era muy altivo y tenia sentido del humor - ela fazia questão de
dizer.
Penso
como teria sido interessante conversar com aquela personagem. Imigrantes em
geral procuram outras terras por questões de sobrevivência ou melhores condições
de vida, mas sempre em busca de bens materiais. Não me lembro de alguém que
tenha abandonado seu país devido a uma desilusão amorosa. Foi o caso do seu
Paco quando saiu da Espanha. Todavia, foi bem sucedido. Trabalhou, fez
dinheiro, conheceu aquela que viria a ser sua esposa – imigrante como ele – com
quem fez descendência. Envolveu-se também com outras mulheres. Não farei
comentários sobre isso, por discrição e porque pouco do assunto me foi
revelado.
Uma semana após a morte do pai encontrei Osita às voltas com os seus
pertences. Parecia um pouco transtornada. Um rápido olhar sobre as peças de
vestuário masculino que jaziam sobre a poltrona permitiu-me identificar suas
intenções.
- Mira, disse ela alcançando-me uma delas. Mira el tejido! No es
bonito? Proba lo!
Ante sua intenção de fazer minhas as roupas do pai falecido tentei protestar,
pois nunca na vida havia herdado roupas de alguém – de facto, quando criança,
minhas roupas é que passavam para o irmão mais novo.
- “É que não gostei muito da cor”, argumentei. Entretanto, a insistência para
que eu experimentasse, fez-me suspeitar de uma coisa: em sua cabeça, aquele
paletó marrom escuro já era meu! A contragosto aquiesci, vestindo então o
casaco.
- Te queda muy bien! ela exclamou.
- Me parece um tanto pesado... observei, lembrando dos coletes de chumbo que
por vezes vestira ao acompanhar pacientes ao setor de radiologia. Ela, porém,
não me ouvia.
- “És madrileño!” disse entusiasmada.
“Está bem, levo o casaco...” disse eu, já um tanto conformado. Afinal, eram
mais de quatro anos de dedicação ao pai e eu não poderia manchá-los com uma
atitude de simples recusa.
- Y los pantalones, no lo vas a probar?
- “A calça não!” protestei com veemência. Mas não a convenci.
- Son ropas finas y casi nuevas... acaso piensas que las daría al portero?
- “Bem, primeiro vou mandá-lo para lavanderia e depois veremos” - disse para
lhe acalmar, pois a última coisa que eu desejava naquele momento era fazer uma
desfeita à mi Osita, por menor que fosse.
Acidente vascular cerebral sem possibilidade de resposta ao tratamento. Se em
grau avançado, limita a independência, a liberdade de ir e vir e a autoestima -
nossos bens mais preciosos.
Com o conhecimento tecnológico sendo progressivamente aplicado à medicina há
tendência em dividir o corpo humano em domínios cada vez menores. O ruim é que
se especializaram em cuidar de cada setor isoladamente, esquecendo que integram
um ser mais complexo - somático e psíquico - e não apenas sistemas biológicos.
Temos então uma pessoa respirando por meio de aparelhos, a circulação mantida
por drogas administradas por cateteres e alimentando-se por dietas administradas
por sonda. Na cavidade abdominal, líquidos são infundidos com finalidade de
substituir os rins na tarefa de eliminar líquidos e escórias. De um lado, a
necessidade de se esgotar os recursos de tratamento disponíveis antes de
declarar o paciente como terminal, pois há sempre o risco de se perder um
doente potencialmente curável. De outro, o risco de se incorrer no chamado
“furor terapêutico” em que, a tentativa de prolongar artificialmente a vida
prossegue até a falência total dos órgãos. Como tudo na vida, as boas coisas
podem se tornar ruins, dependendo do uso que se faça delas. É verdade que hoje,
os cuidados paliativos começam a ser reconhecidos pelas equipes médicas e pela
sociedade. Menos mal.
O desvelo que ela dispensou ao pai durante a doença continuou após sua morte,
conforme constatei quando, no morgue, eu ajudava o atendente a passar o defunto
para o caixão:
- Pobrecito, que está passando frío en esta losa, murmurou consternada.
Por algum tempo, vimos juntos uma árvore crescer no lugar que ela escolhera -
uma bela praça situada na parte alta da cidade. Osita atendera minha
sugestão de misturar as cinzas do pai à terra do plantio daquela árvore – não
me recordo do nome, mas imagino-a agora alta e frondosa.
Hoje penso como seria sentar com ele à mesa do bar e pedir uma cerveja. Sinto
até certa emoção ao nos imaginar erguendo os copos:
- À sua saúde, seu Paco!
* Osita: termo espanhol carinhoso para
designar ‘ursinha’Para ouvir em som estéreo, assim que acessar
o vídeo, clique na tarja vermelha superior
The Carmina Quartet (Matthias Enderle, violin 1, Susanne Frank, violin
2, Wendy Champney, viola & Stephan Goerner, violoncello) plays the
fourth movement ("Fandango") from Boccherini's Guitar Quintet G. 448 in D
Major. With Rolf Lislevand, guitar and Nina Corti, castanets.
English Class
In love, expressão eloquente
Nascida no Reino Unido,
Significa estarmos dentro
Do que nos dignifica os sentidos.
Se no inglês, In é estar dentro
Responda-me esta agora:
É possível gostar de alguém
Estando do lado de fora?
Uma lição vou deixar p’ra você
E guarde-a para sempre:
Não se perde o que não se tem
Mas cuida-se melhor do que é da gente
Falcão - Você é a letra x da palavra love
https://youtu.be/nsSciMP4mTA
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