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Réquiem



      Ah, os velhos, seus conceitos e os pontos de vista que nos passam! Conhecer sua sabedoria é como estar à sombra de uma velha árvore.
     Eles vem de um tempo em que o mundo era mais simples e, embora o progresso lhes tenha facilitado a vida, tornou algumas coisas mais complicadas.
     Como morrer, por exemplo. Em geral, velhos morriam em casa, cercados da atenção da família e amigos. É o que nos contam as pinturas antigas. Hoje, o moribundo é escamoteado de seu ambiente familiar para morrer internado em uma UTI, onde por vezes, até aos familiares é vedado o contato, o direito de permanecer com o seu ente querido. Às crianças se diz que o avô viajou para longe ou foi para o céu.
     Em uma sociedade em que a mídia usa a imagem da juventude para vender produtos, a morte é o fracasso total, pois afeta o binômio da produção e do consumo. Temos então uma sociedade que rejeita a morte, mas que, por outro lado faz dela um negócio. Haja vista os planos de jazigo, que oferecem desde salas de velório até flores, bar e restaurantes. Recentemente um amigo me contou que, à saída de um velório, ao notar uma mesa forrada de doces finamente embalados, perguntou à funcionária o que era aquilo. Ela respondeu com naturalidade que eram “bem velados” (uma analogia com “bem casados”).
     Não me agrada falar sobre embelezamento de cadáveres por meio de maquiagem e cremes que compõem o exercício das atividades funerárias. Porém, quis o acaso que eu interviesse para consertar um serviço dessa natureza.
     O que narrarei a seguir passou-se há muito tempo. Estava eu no serviço funerário municipal, onde era velado um senhor cuja presença, em vida, testemunhara minha aproximação com sua filha, uma moça a quem chamarei Osita.* Era noite e estávamos apenas ela e eu no local. Os conscienciosos agentes já haviam executado o trabalho a que me referi - mal feito – pelo qual foram pagos - e tinham sumido.
     Com o passar das horas, o calor se encarregou de fazer minar fluidos pelo nariz do defunto. Percebi que o caso requeria uma ação rápida, pois já era madrugada e os familiares - que não eram poucos - chegariam de manhãzinha para integrar o cortejo fúnebre até o crematório. Deixei então Osita ao lado do pai e fui atrás de uma farmácia de plantão, onde adquiri um kit de curativos. Munido de pinça e gazes, consegui dar um jeito na situação. Precisei repetir a operação algumas vezes, mas afinal fui feliz em meu intento de não permitir que a última visão do ente querido causasse má impressão à família.
     Nunca conversara com o falecido, pois nas ocasiões em que o visitei estava na UTI, sedado ou inconsciente. Por mais de uma vez havia apertado suas mãos, tendo então observado que os dedos já estavam em posição deformada devido à sequela do acidente vascular cerebral que sofrera.
     Tampouco soube ele quem eu era, embora lhe fosse apresentado por sua filha na primeira visita que lhe fiz durante sua derradeira estadia no hospital.
     - Papá siempre fue testarudo, disse-me ela, ao que eu respondi:
     - “E há algum espanhol que não seja?” Ela achou graça e disse a ele elevando o volume da voz:
     - Mira, papá, ese es mi novio!
     Uma ou outra vez surpreendemo-lo abrindo os olhos, debilmente. Talvez entendesse alguma coisa do que dizíamos. Às vezes seu rosto deixava escapar uma expressão de ironia desgastada, talvez por saber que havia perdido a independência. Teria ele mesmo consciência desse fato?
     - Él era muy altivo y tenia sentido del humor - ela fazia questão de dizer.
   Penso como teria sido interessante conversar com aquela personagem. Imigrantes em geral procuram outras terras por questões de sobrevivência ou melhores condições de vida, mas sempre em busca de bens materiais. Não me lembro de alguém que tenha abandonado seu país devido a uma desilusão amorosa. Foi o caso do seu Paco quando saiu da Espanha. Todavia, foi bem sucedido. Trabalhou, fez dinheiro, conheceu aquela que viria a ser sua esposa – imigrante como ele – com quem fez descendência. Envolveu-se também com outras mulheres. Não farei comentários sobre isso, por discrição e porque pouco do assunto me foi revelado.
      Uma semana após a morte do pai encontrei Osita às voltas com os seus pertences. Parecia um pouco transtornada. Um rápido olhar sobre as peças de vestuário masculino que jaziam sobre a poltrona permitiu-me identificar suas intenções.
     - Mira, disse ela alcançando-me uma delas. Mira el tejido! No es bonito? Proba lo!
     Ante sua intenção de fazer minhas as roupas do pai falecido tentei protestar, pois nunca na vida havia herdado roupas de alguém – de facto, quando criança, minhas roupas é que passavam para o irmão mais novo.
     - “É que não gostei muito da cor”, argumentei. Entretanto, a insistência para que eu experimentasse, fez-me suspeitar de uma coisa: em sua cabeça, aquele paletó marrom escuro já era meu! A contragosto aquiesci, vestindo então o casaco.
     - Te queda muy bien! ela exclamou.
     - Me parece um tanto pesado... observei, lembrando dos coletes de chumbo que por vezes vestira ao acompanhar pacientes ao setor de radiologia. Ela, porém, não me ouvia.
     - “És madrileño!” disse entusiasmada.
     “Está bem, levo o casaco...” disse eu, já um tanto conformado. Afinal, eram mais de quatro anos de dedicação ao pai e eu não poderia manchá-los com uma atitude de simples recusa.
     - Y los pantalones, no lo vas a probar?
     - “A calça não!” protestei com veemência. Mas não a convenci.
     - Son ropas finas y casi nuevas... acaso piensas que las daría al portero?
     - “Bem, primeiro vou mandá-lo para lavanderia e depois veremos” - disse para lhe acalmar, pois a última coisa que eu desejava naquele momento era fazer uma desfeita à mi Osita, por menor que fosse.
     Acidente vascular cerebral sem possibilidade de resposta ao tratamento. Se em grau avançado, limita a independência, a liberdade de ir e vir e a autoestima - nossos bens mais preciosos.
     Com o conhecimento tecnológico sendo progressivamente aplicado à medicina há tendência em dividir o corpo humano em domínios cada vez menores. O ruim é que se especializaram em cuidar de cada setor isoladamente, esquecendo que integram um ser mais complexo - somático e psíquico - e não apenas sistemas biológicos. Temos então uma pessoa respirando por meio de aparelhos, a circulação mantida por drogas administradas por cateteres e alimentando-se por dietas administradas por sonda. Na cavidade abdominal, líquidos são infundidos com finalidade de substituir os rins na tarefa de eliminar líquidos e escórias. De um lado, a necessidade de se esgotar os recursos de tratamento disponíveis antes de declarar o paciente como terminal, pois há sempre o risco de se perder um doente potencialmente curável. De outro, o risco de se incorrer no chamado “furor terapêutico” em que, a tentativa de prolongar artificialmente a vida prossegue até a falência total dos órgãos. Como tudo na vida, as boas coisas podem se tornar ruins, dependendo do uso que se faça delas. É verdade que hoje, os cuidados paliativos começam a ser reconhecidos pelas equipes médicas e pela sociedade. Menos mal.
     O desvelo que ela dispensou ao pai durante a doença continuou após sua morte, conforme constatei quando, no morgue, eu ajudava o atendente a passar o defunto para o caixão:
     - Pobrecito, que está passando frío en esta losa, murmurou consternada.
     Por algum tempo, vimos juntos uma árvore crescer no lugar que ela escolhera - uma bela praça situada na parte alta da cidade. Osita atendera minha sugestão de misturar as cinzas do pai à terra do plantio daquela árvore – não me recordo do nome, mas  imagino-a agora alta e frondosa.
     Hoje penso como seria sentar com ele à mesa do bar e pedir uma cerveja. Sinto até certa emoção ao nos imaginar erguendo os copos:
     - À sua saúde, seu Paco!
* Osita: termo espanhol carinhoso para designar ‘ursinha’


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The Carmina Quartet (Matthias Enderle, violin 1, Susanne Frank, violin 2, Wendy Champney, viola & Stephan Goerner, violoncello) plays the fourth movement ("Fandango") from Boccherini's Guitar Quintet G. 448 in D Major. With Rolf Lislevand, guitar and Nina Corti, castanets.