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Ainda sem título

         Naquele dia, ao entrar na UTI quis saber como estava o T, um menino de 8-9 anos, internado havia 3 semanas com um quadro convulsivo de provável causa infecciosa (encefalite). O controle parcial das convulsões fora conseguido por meio de coma induzido por barbitúricos e outras drogas novas. Em meio a evidências de infecção, distúrbios eletrolíticos, crises convulsivas detectadas pelo eletroencefalograma, uso de drogas anticonvulsivantes, suportes cardiocirculatório, ventilatório, nutricional e antibióticos, ele vem sobrevivendo. Pela experiência com casos semelhantes sabemos que as chances de recuperação são muito pequenas e que, mesmo que haja melhora do quadro clínico geral, restarão sequelas neurológicas importantes. Naquela semana, mais uma complicação: apareceu-lhe um exantema polimorfo intenso, de provável causa medicamentosa. Como tememos pela síndrome de Stevens Johnson, na terça feira eu e o JC instamos com o P, neurologista, para que suspendesse o fenobarbital, o que ele fez sem muita convicção. Felizmente o exantema melhorou bastante, o que constatei pessoalmente (um provável caso de DRESS - Drug Reaction with Eosinophilia and Systemic Symptoms).

Sua mãe não percebeu quando entrei no quarto. Estava sentada ao lado direito do filho, imóvel, parecendo dormir, com as mãos pousadas sobre ele. Ao aproximar-me devagar e em silêncio para não incomodá-la, notei que logo abaixo de seus olhos, quase cerrados, revelava-se uma lágrima isolada. Cumprimentei-a, comentando sobre a melhora da pele – o que diante do panorama geral era uma boa nova. Ela sorriu, dizendo-me que ele já estava tendo alguma movimentação nas pernas. Procurando sintonizar com o seu discreto otimismo observei que este, em conjunto com outros dados – ele já estava há 24h sem crises – era um bom augúrio. A cena seria aparentemente comum, não fosse a visão do testemunho silencioso da dor materna que, por poucos segundos, despiu-me da máscara que os de minha profissão aprendem com o tempo a vestir, e que nos afasta de sentimentos que podem interferir em nosso raciocínio e prejudicar a terapêutica. 

        Médicos têm algum poder para mudar a evolução natural das doenças e isso, como ocorria aos pagés e feiticeiros, os distancia um pouco da realidade dos seres humanos. São sensações como a que me passou a lágrima da mãe que nos tornam outra vez pessoas comuns e conscientes de que estamos sujeitos às doenças e tragédias como todo o mundo. 

Como coordenador não tenho contato frequente com os pacientes da UTI e suas famílias, mas apenas uma visão panorâmica e pontual dos casos das crianças internadas. Entretanto, desde aquele momento penso neles como até então não o fizera.