Chegara o dia de voar para Praga, onde aconteceria o ESPEN 2025. Considerando a fase atual, eu não estava motivado, porém, por menos que se esteja, há sempre uma expectativa em relação a uma viagem como essa - boa ou ruim, e não se sabe qual delas será concretizada.
Peguei o ônibus em Congonhas, que me deixou em GRU com antecedência de mais de 4h. Mesmo assim, a fila para o despacho de bagagem nos guichês da Swiss já era grande. Cumprida essa etapa, passei pelos controles de passaporte e de Raios X, onde fui “sorteado” para uma inspeção mais detalhada; ao sair de lá, apalpei os bolsos para me certificar que estavam no lugar passaporte e carteira, operação que viria a repetir mais vezes ao longo da viagem.
Segui então para uma regalia que eu queria experimentar: o lounge VIP – VISA Airport Companion. Após mais um pouco de fila e burocracia digital no celular (tive que criar outra senha), a moça detrás do balcão, anunciou, com ligeira afetação solene, que eu era bem-vindo. Com uma moderada sensação de triunfo (que duraria pouco) entrei no bufê, onde havia gente circulando e uma certa efervescência. Todos já estavam acomodados em suas mesas, a comer e conversar ruidosamente. Perguntei a um garçom e ele indicou onde eu poderia me servir. A comida era posta em bancadas compridas e notei que certas ‘iguarias’, conforme o interesse específico da freguesia, logo desapareciam. Não tendo avistado mesas ou nichos individuais desocupados, instalei-me em uma mesa estreita, comprida e com bancos dos dois lados. O cenário ali não se ajustava com a afetação do nome e se eu pensasse em um lugar sossegado, não seria aquele. Para se ter ideia do movimento, quando saí em busca de mais algum comestível para completar o meu repasto - que naquelas alturas tinha macarrão como o prato chefe - ao voltar à mesa um cara já havia tomado o meu lugar. Porém, ao perceber que eu estava ocupando aquele espaço, ele amistosamente sentou-se do lado oposto. A julgar pelo tamanho da amostra que lá se empanturrava, imagino haver um bom número de VIPs no país...
Deixando o lounge, procurei pelo portão de embarque para Zürich. Ao chegar – eu tinha bastante tempo - acomodei-me e puxei o livro ‘Olhai os lírios do campo’, que serviu para iniciar contato com uma senhora de Ribeirão Preto que ia à Suíça visitar os filhos que lá trabalham. Nossa prosa fluiu e imaginei que isso seria um bom augúrio. Às vezes é agradável conversar com pessoas de idade provecta como a nossa. A propósito, uma das vantagens de se estar na fase de older adult - termo do qual tomei conhecimento ao ler no Am J Clin Nutr um recente artigo sobre sarcopenia - é a de se poder conversar com pessoas da mesma geração e ser compreendido. Dada a maior vivência, sempre temos algo a contar e elas também (salvo se forem alienadas e sua sabedoria não tenha se convertido em teimosia). Da nossa parte, se não lembrarmos exatamente de uma passagem antiga, sempre é possível inventar, o que frequentemente torna a versão de momento mais interessante. É também mais fácil de alinhar as perspectivas.
Poucas situações são tão decepcionantes em uma aula ou diálogo, quando ao mencionamos, por exemplo, Nelson Rodrigues ou Federico Fellini para ilustrar algum conceito abstrato, o interlocutor mantém a expressão impassível ou então sorri acanhado, assumindo saber quem foi um ou outro (o que é pior, pois perdemos a chance de esclarecer), mandando por água abaixo o nosso esforço de argumentação. É como perder a sintonia de uma rádio – só que além do ruído de estática, temos aqui o ruído de comunicação. Isso supostamente é mais difícil de acontecer quando dialogarmos com alguém nascido há mais tempo, também porque o sujeito provavelmente não recebeu a influência da mídia digital e da deterioração da linguagem escrita sobre seu desenvolvimento intelectual. Maryanne Wolf, autora de ‘O cérebro no mundo digital’ e ‘O cérebro do leitor”, aponta os possíveis efeitos da tendência cultural para a homogeneização da linguagem: desde o estreitamento das escolhas lexicais para se produzir manuscritos mais breves até a menor complexidade sintática e o menor uso da linguagem figurada – dois recursos que exigem um conhecimento de fundo que parece estar hoje em falta.
Voltando aos older adults, a outra vantagem é nos confortarmos com a solidariedade – o tácito entendimento de que se estamos ferrados, menos mal se estamos ferrados juntos. Admito, contudo, que quando menino ou jovem, era natural que preferisse conversar com os da minha idade. Os adultos, com suas ideias prontas, eram chatos ou seus temas, em geral, não me interessavam. Hoje concluo que, embora haja coisas maravilhosas que se pode fazer ou imaginar em silêncio (e em certos casos é melhor que seja assim...), de um modo ou de outro, a conversa é uma das coisas boas que ainda não tiraram da gente *(ver nota ao final do texto).
Embarque tranquilo, retribui à dita senhora os votos de boa viagem e tomei meu lugar no avião. Constatei que existia um incômodo estreitamento do espaço lateral do assento que, no entanto, era bem amplo em relação ao assento da frente. Seria melhor ter escolhido a poltrona do meio ou da janela. Nessas viagens, cujos poucos momentos positivos são as sorridentes boas-vindas na entrada e as despedidas que nos dão os tripulantes ao desembarcarmos, em geral não penso na probabilidade de acidentes aeronáuticos. O que receio é topar com seres que não foram bem aquinhoados no quesito propriocepção, ou são apenas chatos. Isso se aplica a quem vai no assento do lado, da frente ou de trás e também aos que, menosprezando a mochila que tão cuidadosamente acomodamos no bagageiro superior, esmagam-na ao colocar por cima uma mala de material rígido. Ao menos nesta última situação, tenho sido categórico em chamar o incauto à razão, mas nem sempre com bom resultado, pois algum comissário acaba aparecendo para ‘ajeitar’ e não ajeita nada – apenas fecha o compartimento.
Enquanto eu me distraia com tais pensamentos, chega a minha companhia de fileira -sem espalhafato ela e senta e começa a ler um livro digital. De novo entrou em cena o livro do Érico Veríssimo, que foi o trigger para um início de conversa. Ela lia a história de um alpinista e do alpinista passamos ao Amir Klink, e daí para outros assuntos. Surpreendeu-nos o fato de sermos colegas de profissão - ela se formara e fizera residência de Pediatria na USP, e de Psiquiatria no HSPE. Tem consultório psiquiátrico em Ulm, onde vive com o marido alemão e dois filhos. Suas feições e o jeito de se expressar lembravam a Gre, que conheci em 1983 no Curso de Saúde Materno Infantil na Faculdade de Saúde Pública da USP e que viria a ser minha boa colega no Hospital Pérola Byington. Fôra a SP para se submeter a uma cirurgia - disse ser o atendimento daqui melhor, e que os médicos alemães não dão muita bola para as queixas dos pacientes. Contou como fora parar em Ulm, sobre a família e um pouco sobre como funciona a medicina na Alemanha.
O serviço de bordo era feito por dois comissários de cavanhaque e fenótipo árabe: um caricato e loquaz em excesso e o outro, a quem pedi um garfo, deu-mo segurando-o pelo trinchador (higiene não era o seu forte). Pelo menos, a comida estava satisfatória. Após o pouso, continuamos conversando e no saguão da área de desembarque do aeroporto de Zürich despedi-me da colega, que passou seu número de telefone para eventual contato. Ela faria conexão para Munique, onde o marido e os filhos a estariam esperando.
A sala de embarque da conexão para Praga, velha conhecida, estava quase repleta, com passageiros que esperavam seus voos. O nosso saiu com um pouco de atraso e ainda permanecemos no ônibus por uns 10’, pois o avião ainda não estava pronto. A viagem foi agradável; tive como colegas de poltrona brasileiros que iam para o congresso: um ‘nutrólogo’ do HC e uma de BH, os dois bem amistosos.
No desembarque em Praga, a preocupação de sempre com o extravio da mala, que finalmente chegou. Na saída, avistei o motorista do Prague Airport Transfers segurando uma placa com meu nome. Com ele, estava um casal de idosos. Saímos, atravessamos a rua e entramos em uma VW Passat Variant de cor preta, que nos levaria aos hotéis. Como parte do pacote, recebemos uma garrafa d’agua, um guia ilustrado da cidade e um tour a pé pela cidade. O casal desceu primeiro, em um hotel aparentemente luxuoso. O trânsito estava lento por ser sexta feira, o que nos fez demorar aproximadamente 1h do aeroporto até o Avenue Legerova 19.
Recepcionista loira, magrinha, bonita e afável. Quarto e banheiro com espaços suficientes, tudo bem funcional. Compenetrando-me da próxima missão a cumprir, tirei as roupas da mala, fechei-a e desci à recepção para me informar sobre como ir ao supermercado mais próximo. Ela pega um mapa e me explica o itinerário. Não foi possível achar, porque o caminho passava por um parque e havia diferentes vias de trânsito para confundir. Volto às proximidades do hotel e pergunto a um transeunte que, com paciência, indica uma direção em que teria que descer escadas. Após a escadaria, saio em uma avenida; não sabendo qual o sentido tomar viro à esquerda, ando uns 100 m e decido perguntar a uma senhora: o Billa ficava no sentido oposto, a uns 400m dali. A unidade não era lá muito ampla, mas tinha um pouco de tudo. Comprei sanduíche, dois pães pequenos, queijo camembert, chocolate 70% de produção própria, amêndoas, cramberries desidratadas e uma garrafa d’água: 395 CZK. De volta ao hotel, fiz a minha farofa, tomei banho, assisti um pouco de TV (lixo) e fui dormir.
No sábado o café abriu às 7h30. Havia uma pequena variedade de pratos para quem come bastante de manhã, o que não me interessou - fiquei no pão branco (integral só em fatias e industrializado), queijo, café com leite e maçã, que vinha cortada em pedaços (às vezes melancia). A nota negativa foram os vídeos “musicais” (força de expressão) no monitor de TV do refeitório a surrar os ouvidos e o espírito dos hóspedes. Contudo, a hospedagem no Avenue Legerova 19 era bastante satisfatória e a localização era próxima a facilidades, a poucas quadras da estação de metrô I.P. Pavlova. Além da loirinha simpática e prestativa da recepção, chuveiro bom, frigobar e equipamento para cozinhar pequenas refeições tornavam o lugar confortável. O único problema ocorreu por conta do fraco isolamento acústico – eventualmente à noite podia-se ouvir passos dos hóspedes do andar de cima e gente falando alto no corredor.
O próximo ‘desafio’ era achar o caminho para o Prague Congress Centre. Eu sabia a direção, mas não o caminho a tomar, porque a Legerova avenue acaba em um parque ladeado por um viaduto e com duas vias de trânsito rápido. Entrei no parque, onde um ou outro transeunte apressado passeava com o cachorro. Achei que eles não me dariam atenção. Instantes depois, ao olhar para trás vi um chinês, que passeava devagar e sem cachorro; perguntei e ele, olhando no aplicativo me informou, sorrindo, o caminho: entrar no viaduto e seguir adiante uns 700 m. Comecei a marcha e no meio do caminho enxerguei ao longe o que parecia ser o prédio, mas era do lado oposto da avenida. Ao término do viaduto descia-se por uma escada até um hotel e uma passagem parecia dar lá. Tendo encontrado alguns árabes que aparentemente pretendiam ir ao mesmo lugar, comigo na dianteira seguimos mais ou menos juntos. Daí foi fácil até chegarmos à estação do metrô Vysehrad, bem ao lado do congresso.
No saguão, enquanto imprimia o código de barras necessário para receber o crachá, dei com a Fe, que recebia instruções da recepcionista. Não nos deram bolsa e cadernos, apenas transporte urbano durante o congresso. Para isso teríamos que baixar um aplicativo e digitar códigos complicados - tudo digital e nada em papel. Naturalmente conseguimos acessar o vale de transporte com o auxílio de outra recepcionista – eficiente e, para nossa sorte, era brasileira, de Curitiba. A Fe esquecera seu pôster no avião e iria até um determinado lugar na cidade para imprimi-lo. Eu participaria do tour fornecido pelo transfer, às 11h, devendo estar de volta às 15h para assistir à palestra do Sobotka.
Rumamos então para o metrô; Fe desceu na estação seguinte (I.P. Pavlova) e eu faria baldeação na estação Muzeum para chegar à estação Starometská, na linha verde. Saindo da estação peguei a rua Kaprova (muita atenção em memorizar os nomes das ruas e as referências para não se perder) e cheguei à praça da cidade velha de onde vi, mais ao fundo, uma igreja bonita; continuei até dar com o relógio astronômico diante do qual uma horda de gente começava a se apinhar para ver o movimento das estátuas na hora cheia.

Saindo dali fui fazer um reconhecimento pelo lugar de onde sairia o tour (esquina com a rua Paris – onde ficavam as lojas de griffe) e preventivamente comprei algum carboidrato em uma padaria próxima. Chegando ao ponto de encontro avistei a guia, baixinha, de meia idade (ela disse que era de 1970) segurando um guarda-chuvas vermelho (conforme as instruções do guia ilustrado). Ela me disse haver tempo para, caso eu quisesse, assistir ao movimento das figuras do relógio. Fui e quando voltei estavam com ela dois casais de sêniores, sendo um deles de chineses americanos. Partimos, ela sempre animada. Mostrou-nos monumentos de Jan Huss - precursor do luteranismo tcheco, uma igreja enrustida, mas de interior muito bonito, onde era celebrada missa alusiva a um evento histórico. Percorremos a cidade velha e a cidade nova, vimos o teatro onde se deu a estreia da ópera Don Giovanni de WA Mozart e conhecemos o bairro judeu (o cemitério estava fechado). Acho que ela se aprazia em falar sobre as desgraças que ocorreram em Praga – a queima na fogueira de Jan Huss, considerado herético por seus adversários; brigas entre católicos e protestantes (para variar). Paramos em frente a uma construção antiga (igreja?), diante da qual ocorreram execuções de pessoas durante várias horas – ela mostrou inscrições alusivas no calçamento.
Além das referidas tragédias, nossa guia mencionou as famosas defenestrações de Praga, nas quais (acho que foram dois episódios) alguns membros do governo foram lançados pela janela do Castelo de Praga. Talvez fizesse algum bem para o país reproduzir tal ação em alguns dos que ocupam os edifícios da praça dos três poderes. Mostrou-nos também o monumento que representa a autoimolação de Jan Palach em protesto contra a invasão dos comunistas soviéticos, cujos tanques adentraram Praga em 1969, e outro que representava a dor sofrida por sua mãe. Ambos os monumentos são - disse a guia - de arquitetura moderna e gosto estético duvidoso, com o que concordamos. Mais andança e paramos em uma ponte de onde se via Castelo de Praga. Aqui o casal de chineses se despediu; atravessamos a ponte mais o outro casal e chegamos a um jardim bonito e aprazível. Ela continuava a falar, desta vez sobre obras de arte que foram surrupiadas pelos suecos em uma guerra com os tchecos.
Eu teria que voltar a tempo para assistir à aula do Sobotka (Refeeding Syndrome) às 15h; a guia me dissera que o tour se encerraria tranquilamente por volta das 14h15, mas continuava a nos mostrar lugares e a falar. Sem fazer menção de parar, ela seguia cada vez mais para o interior do jardim, que possivelmente seria um caminho para se chegar ao castelo. Enfim sentou-se em um banco, dizendo estar cansada. Foi a deixa para eu agradecer, me despedir e começar a driblar grupamentos de turistas rumo à estação do metrô próxima à entrada do jardim - Malostranská - e dali até a Muzeum, de onde fiz a baldeação para a linha vermelha até Vyserhad – ao lado do Congress Center, onde pude assistir às aulas sobre Refeeding Syndrome.
De manhã e à tarde, a organização do congresso oferecia nos intervalos um bom serviço de bufê. O problema era conseguir chegar a tempo, pois a circulação era lenta (aprox. 4.700 inscritos). Com o tempo ficamos mais espertos - Fe e eu preferíamos os lugares mais afastados, nas extremidades, onde havia menos comensais e maior chance de achar mesas desocupadas.
Quando da visita à cidade velha eu vira o anúncio na Igreja São Nicolau, de que às 17h haveria ali um concerto e à tarde segui para lá. A apresentação – dois violinistas e um pianista e organista - foi bonita, terminando pontualmente às 18h. Voltei rapidamente para o congresso, a tempo de assistir à aula do Prof. Lubos Sobotka - grande decano da área de metabolismo e nutrição - como parte da cerimônia de abertura. Não houve apresentação musical, mas a aula do Sobotka - sobre metabolismo e a evolução das espécies - terminou de modo emocionante, ao som de O Moldava de Smetana. Saímos um pouco antes do término da cerimônia de abertura, para evitar muita concorrência para acessar os comes e bebes.
Voltando ao congresso na manhã seguinte, encontrei o Sobotka na escada rolante de acesso aos salões e lhe disse: “The best conference I’ve ever seen”, ao que ele segurou o meu braço, respondeu de modo humilde e sem afetação: ‘Thank you very much’ e seguiu célere, levando o seu poster debaixo do braço.
À tarde, uma surpresa: encontramos com a Ju, que está trabalhando em uma empresa de fórmulas lácteas em Londres. Como sempre tranquila, estava com uns quilinhos a mais e parecia satisfeita. Sando do congresso, pesquisei lojas de cristais - uma delas era famosa, fina, e naturalmente com os preços compatíveis com tais atributos. Decidi ir à outra casa sugerida pelo guia ilustrado onde, atendido por uma chinesa gentil e de formosos contornos, comprei dois cálices pequenos para repor os que eu quebrara em casa ao longo do tempo. Não me lembro se fui ao Bageterie Boulevard, mas por conta destes afazeres, acabei não indo jantar com Fe e esposo no restaurante U Pravdu.
No dia seguinte, segunda-feira, saí cedo para ver a escultura Kafka Rotating Head antes de ir para o congresso. Cheguei no momento exato em que ela começava a se movimentar. Esta foi a única atração que pude apreciar sem estar acompanhado de uma ‘galera’ (quando eu estava saindo chegou uma oriental, mas ela teria que esperar, pois chegou na hora em que a cabeça estava em repouso.
Eu procurava assistir às aulas que havia pré-selecionado; algumas eram simultâneas e era preciso decidir. Além do Sobotka, vários professores - Mete Berger, Philip Calder, Steven Heymsfield, Jeppesen, van Zanten, e outros nomes conhecidos na literatura formaram a base da boa qualidade científica do evento. Até o Loris Pironi com sua burocrática figura de guarda-livros antigo (só falta a viseira na testa) deu uma aula razoável, embora articulando seu habitual Inglês de acento italiano de forma insossa e protocolar. Não perdi tempo em assistir as aulas da seção pediátrica, cujos palestrantes provavelmente foram escolhidos por critério político. A Fe, que se aventurou, disse-me ter saído da sala a lastimar a qualidade da exposição. À tarde, combinei com ela e Ju de jantarmos naquela noite, em um restaurante que pesquisamos na internet. Haveria mais um concerto na Catedral de São Clemente, com um número de músicos maior, que assistiríamos antes do jantar.
Chegando à catedral 1h mais cedo, ciscamos um pouco na Ponte Carlos – paisagem lindíssima - em frente à igreja. Aquela mudança de ambiente era bem-vinda e oportuna - não pensar em compromissos ainda que por breve tempo, trocar ideias com colegas de trabalho fora da rotina profissional e a promessa de ver coisas diferentes em um lugar tão bonito...
Entramos na igreja e acomodamo-nos na quarta fileira de bancos. Os músicos eram bons e o concerto foi bonito – três violinos, um violoncelo, um contrabaixo e o órgão soaram peças bem conhecidas. O jantar nem tanto, pois a carne do goulash era entremeada por um pouco de gordura (dizem que é assim mesmo). Combinamos de tomar sorvete na Amorino, ali perto. Pagamos a conta e eu disse que iria rapidamente ao banheiro. Ao voltar (e eu fui mesmo rápido) estranhei, pois não vi ninguém à mesa, ou melhor, uma pessoa apenas - um homem de meia idade e de semblante sério e indiferente. Julgando que estivessem a me esperar à saída do restaurante, fui até lá, olhei em volta e passei pelo lado de fora à altura onde ficava a mesa – porém lá estava o mesmo homem, impassível. Mais uma vistoria no lado de dentro, voltei à rua e ao passar de novo pela janela o homem não estava mais lá. Intrigado, resolvi ir para a praça na esperança de encontrá-los, mas sem sucesso. Então entrei na Amorino, pedi o sorvete e fui me sentar do lado de fora.
Decorridos poucos minutos, julgando ter ouvido ao longe algum alvoroço, olhei em direção à praça, onde avistei Fe, o esposo e Ju. Acenei para eles, que vieram. O que teria acontecido? Elas tinham ido ao banheiro quase no mesmo momento que eu, permanecendo na mesa apenas o cônjuge da Fe, a quem não reconheci de longe quando voltei. Com o retorno delas, como eu não aparecesse, ele foi ao banheiro me procurar. Não sei se não o reconheci por ter olhado de relance ou pelo fato de ele estar sorridente e descontraído durante o jantar – na verdade todos estávamos - não combinasse com o visual sério do cara que vi à mesa quando voltei do banheiro. Achei o fato estranho e preocupante, pois embora eu não guarde os nomes das pessoas, em geral tenho boa lembrança das fisionomias.

Era a última manhã do congresso - assisti algumas aulas e saí por volta das 10h em busca de uma livraria, no intento de encontrar uma biografia do Beethoven. Para ir até a Shakespeare eu deveria descer na estação Malostranská; já do lado de fora, perguntei a uma mulher rechonchuda que, com cara de bons bofes e ar de quem sabe o que diz, indicou que eu deveria virar à esquerda. Só que ela estava errada (e olhe que quando eu perguntei novamente ela confirmou que o sentido era mesmo para a esquerda). Tendo caminhado por uns 10’ e suspeitando que aquele não era o caminho, recorri a uma senhora de meia idade e aspecto confiável, que gentilmente me acompanhou na direção ao sentido oposto, que era à direita da estação do metrô. Percorri algumas quadras e avistei a livraria: uma decepção – sobre música, só biografias de artistas contemporâneos e do gênero pop. Voltando, da estação Malostranská peguei o metrô e desci na estação Musek. Com a ajuda de transeuntes, percorrendo as redondezas consegui chegar a uma livraria - mas nada. Decidi então comer no Bageterie Boulevard (por 193 CZK). Depois fui até uma feira livre onde comprei uma carteira de couro por aproximadamente 600 CZK (que dei para o Bernardo).
Voltando ao metrô, desci na Muzeum e entrei em outra livraria importante, também sem sucesso. No outro lado da rua ficava a Luxor, a maior rede entre as livrarias e papelarias de Praga. Também não tinham a biografia do Beethoven, mas acabei gastando algum dinheiro – uma caneta tinteiro Parker que achei bonita e não pensei muito antes de comprar (1.700 CZK) e dois cadernos de papel macio (tulipa), sendo o maior para a professora de piano, por sua pachorra em ensinar e me ouvir (ela diz que é bom para fazer sketches). À noite fui jantar no U Pravdu, distante algumas quadras do hotel. Ambiente, comida (peito de frango com queijo camembert e beterraba), cerveja meio-escura e atendimento bons. Voltaria lá não fosse aquela a última noite. Rara tranquilidade para ler e rever textos (Legere).
Praga é uma cidade turística, cheia de atrações para se visitar e com muita gente a pulular nas principais, em contraste com aquela que eu conheci em 1984, na época da cortina de ferro. As pessoas me pareceram mais sérias, embora nada se compare aos semblantes sombrios que então eu presenciei. No metrô, também muita gente, mas sem aglomeração. Os trens chegavam no horário previsto e em geral eu encontrava assento vago. Diferentemente do que acontece por aqui, os passageiros mais jovens deixam os lugares vagos os que têm maior necessidade, mesmo não havendo alertas de reserva de assento. E os que estavam na plataforma, antes de entrar aguardavam os que iriam desembarcar. Hoje lamento que o tempo que dispendi com a infrutífera cata de livrarias não me permitiu revisitar a Igreja do Menino Jesus de Praga ou mesmo o Castelo.
No dia da viagem de retorno, à 11h deixei as malas no hotel e fiz incursão a uma livraria café, que por informação da internet supostamente ficaria perto do hotel. O endereço existia, mas a livraria não mais. Em uma rua paralela almocei no diminuto
Paprika Mediterranean Kitchen & Bar, de comida ídiche. Quando cheguei estava vazio, mas a meia dúzia de clientes que entrou em seguida deixou-o quase lotado. Depois fui a uma praça ali perto e sentei-me em um banco. Dali a pouco, um mendigo veio sentar-se ao meu lado e iniciou um ritual que consistia em tirar panos e demais petrechos de uma mochila, com a visível finalidade de melhor se acomodar para fazer a sua farofa. Pensei até em dar-lhe um pedaço de chocolate, mas ele, percebendo que havia vaga em banco próximo mudou-se para lá. No que se sentou, a mulher que estava ao lado levantou-se e saiu – acho que porque ele vestia roupas um tanto encardidas. Saindo dali, andei mais um pouco e em uma área movimentada achei uma apotheque, onde comprei um creme para Eliane. De lá passei pelo Muzeum propriamente dito, ao lado do qual fica uma bela praça. A arquitetura antiga e o verde se encontravam ali em rara afinidade.
E voltei a pé para o hotel, para pegar a mala e aguardar o transfer para o aeroporto, que deveria chegar às 14h, permanecendo em uma sala confortável ao lado da recepção. Na hora exata, chegou alguém que pronunciou o meu nome – e vi um senhor de aparência teutônica, alto, elegante, vestindo paletó e gravata. Era o motorista. Despedi-me e agradeci à loirinha e saímos do hotel; estacionado bem ao lado estava o seu veículo - um BMW X5. O motorista informou que o percurso duraria aproximadamente 35’, ao que eu respondi não haver pressa, pois o voo sairia às 19h. Conversamos um pouco; ele disse ter familiares em Praia Grande – SP e que pretendia um dia visitá-los.
No aeroporto, não vi ninguém detrás dos guichês. Recorri então a uma moça com camiseta da equipe de apoio, que de modo automático esclareceu que o despacho de mala era feito por máquina, de modo digital. Eu fizera o check-in online, mas lhe fiz ver que gostaria de ter os cartões de embarque físicos, ao que ela respondeu não ser preciso. Insisti e ela, no mesmo tom impessoal, sugeriu que se quisesse, poderia emiti-los pela máquina de autoatendimento. E deu as costas. Em outras palavras, eu que me virasse - e foi o que fiz. Entendo que a moça podia eventualmente estar com pressa, mas o atendimento por um robô teria sido mais amistoso...
Ao chegar à área de embarque comprei mais um pouco de chocolate com os CZK que me restavam (os preços no freeshop não são convidativos e não há muita variedade) e fui até o portão do meu voo, onde tive algumas horas para continuar a leitura do Érico Veríssimo. Chegamos a Zürich com um pouco de atraso, mas o painel ainda não informava qual seria o portão de embarque do voo para SP. Fiquei apreensivo com o tempo, mas enfim apareceu: Gate A22. Peguei o trem interno que me deixou na área dos portões de embarque. Passagem pelo controle de passaportes e toca a andar até o A22. Chegando lá, novo controle de passaporte no balcão da Swiss e reencontro com os simpáticos ‘nutrólogos’ que conhecera no voo de Zürich a Praga.
Enquanto aguardava o horário de chamada para o embarque, flagrei uma cena até então inédita: dois indivíduos (não poderia dizer ‘cavalheiros’), aboletados em quatro cadeiras jogavam cartas animadamente. Bem à vontade, pareciam não se importar em tomar conta do espaço em detrimento dos demais, inclusive os idosos, que gostariam de se sentar. Eu já vira gente esticada em quatro cadeiras para relaxar, mas ocupar o espaço do semelhante com aquele propósito foi a primeira vez. Quem entra em uma sala de espera imagina que deve haver algum grau de civilidade entre as pessoas. Porém, não se deve subestimar a existência do ‘vulgo da humanidade’ (termo empregado por Arthur Schopenhauer), com quem sempre podemos nos deparar em qualquer parte.
Tendo embarcado na primeira leva, em assento idêntico ao do voo de ida eu aguardava, sem muita esperança, a criatura que sentaria na poltrona do meio. Mais levas passaram até que uma mulher magra, alta e de cabelos castanhos compridos irrompeu da fila e sentou-se ao meu lado. Vestida de modo informal, pele rosada, olhos claros e na casa dos trinta anos, ela murmurou Guten Abend, ao que eu, polidamente, respondi.
Imediatamente senti a emanação corporal de alguém que tivesse jogado bola o dia inteiro e não tomasse banho. Tentei relevar, consolando-me com a ideia de que ninguém pode ter sorte sempre. Procurei não olhar para ela para ver se a coisa melhorava, o que acabou acontecendo, quando ela desembrulhou um doce de amendoim, cujo aroma competiu e ganhou daquele que exalava ao chegar. Todavia, o efeito foi fugaz: após o término da guloseima, o bouquet voltou.
Mas lá pelas tantas, quando já deveríamos estar em altitude de cruzeiro, ela colocou um agasalho, o que filtrou o ar, cujas condições anteriores agora eu só sentia traços. Próximo ao jantar, a alemã (ou seria suíça?) começou a dar o ar da graça. Tendo confabulado com a passageira ao lado, que lhe disse já haver jantado, minha colega propôs que eu perguntasse se ela se importaria de aceitar a bandeja servida pela comissária e cedê-la para nós, com o que a moça concordou. Servidas as refeições, constatei que “para nós”, significava ser exclusivamente para minha colega de poltrona. Não satisfeita, quando lhe mostrei que a senhora idosa da poltrona do corredor não tocara em sua porção de queijo, ela pediu que eu lhe assistisse como intérprete para solicitar à senhora aquela iguaria. Solicitação feita, a vovó lhe forneceu não apenas o queijo, mas ainda um tablete de manteiga. Eu mesmo acabei por lhe oferecer minha garrafinha de vinho tinto - do qual só provara um pouco - o que ela prontamente aceitou, guardando-a.
A impressão que tive inicialmente foi aos poucos se desfazendo - a ‘suíça-alemã’ era muito comunicativa, perguntava às aeromoças, em seu idioma, de que lugar elas eram e fazia comentários amistosos. Disse-me que morava em um lugar da Suíça, próximo de Bern, onde trabalhava no ramo de hotelaria. Com expressão viva e um tanto jocosa, revelou que se lhe perguntassem de onde era, diria não ser de lugar nenhum e que nem sua mãe e sua família sabiam de seu paradeiro naquele momento. Seu destino era Assunción – Paraguai, de onde seguiria para outra cidade onde se encontraria (assim presumia ela) com seu boy friend. Parecia animada e um pouco ansiosa por ser a sua primeira viagem à América do Sul e fez algumas perguntas sobre como achar transporte ao chegar à capital paraguaia. Eu até proferi algumas frases em Alemão - a primeira (de modo errado) foi Ich habe dort gewesen, que ela delicadamente corrigiu para Ich bin dort gewesen. Diferentemente do costume atual, ela não ficou absorta em celular ou tela e deplorou a violência gratuita dos filmes que os passageiros dos assentos próximos assistiam durante o voo. Gostou da cor da tinta da caneta Lamy que eu usava e disse que queria aprender a extrair pigmentos coloridos a partir de plantas.
No final das contas, ela foi uma companhia curiosa e interessante, o que ajudou a tornar mais tolerável o fictício enjoy your flight.
Estas são as minhas impressões da viagem. Enxerguei-as detrás de uma lente panorâmica e de matizes alegres. Através dela, voltando ao que dizia no início, concluo que ainda que parecesse remota, realizou-se a boa expectativa. Acaso ou motivo?
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* ”Com espanto e temor a cobra olhou para um nicho brilhante em que a imagem de um rei venerável era mostrada em ouro puro. Seu corpo bem construído estava coberto por vestimentas simples e uma coroa de carvalho juntava-lhe os cabelos.
Assim que a serpente mirou esse augusto retrato, o rei começou a falar e perguntou:
- De onde vens?
- Dos abismos, redargüiu a serpente, onde brilha o ouro.
- O que é mais precioso do que o ouro? – perguntou o rei.
- A luz – respondeu a serpente.
- O que é mais agradável que a luz? – perguntou aquele.
- A conversa – respondeu esta.”
‘O conto da serpente verde e da linda Lilie’ (Das Märchen von der grünen Schlange und der schönen Lilie). Johann Wolfgang von Goethe. [tradução e posfácio Roberto Ahmad Cattani; e interpretação e comentários Oswald Wirth]. São Paulo. Editora Aquariana, 2012.