Há uma passagem no filme Rois et Reine, do diretor Arnaud Desplechin em que o ator Mathieu Amalric diz a um menino, para encorajá-lo a enfrentar os tempos vindouros que poderiam lhe ser difíceis: “O passado não é o que desapareceu. É o que nos pertence...quando você se sente solitário pode entrar no jardim dos pensamentos e conversar com sua imaginação. ”
Inspirado nessa abstração, narrarei a seguir um breve
episódio de uma noite de romance, entre as vividas pelos protagonistas de “Um
sorriso” (Crônica II, 2017). Muito tempo se passou desde então, mas ele ainda encontra seus vestígios quando
resolve passear pelas ruínas desse jardim.
Olhos postos no céu reluzente, admiravam animadamente os astros conhecidos, tentando
identificá-los. Decorridos alguns minutos, pararam junto ao topo da escada do
plano superior da plantação, de onde se via,
mais abaixo, uma casa de tijolos aparentes com a fachada antecedida por agradável
alpendre.
Ele sentou-se no patamar, vindo ela de imediato acomodar-se
em seu colo, de frente e na posição “a cavaleiro”. Com esse gesto, através do
calor que seu períneo irradiava, manifestava, de forma implícita o seu anseio. Silêncio.
Olhando-se nos olhos e enlevados pela previsão do que viria, começaram a se beijar.
Em seguida, conduzidos pela vontade, desceram até a casa, de mãos dadas. Ao entrarem,
ainda sem se soltarem as mãos, ele fechou a porta. A caminho do sofá reataram o
beijo, e à medida que evoluíam ele esgueirou sua mão direita pela superfície de
suas nádegas – gostava desse contato – e afagando-as, deslizou, procurando
desvendar as veredas subjacentes, enquanto a ouvia sussurrar ternamente.
Findo esse ligeiro reconhecimento topográfico e sensorial, principiou a lhe desabotoar
a blusa e ao concluir, como sempre acontecia, aconchegou-se com a calidez de
seu ventre.
O sofá se prestava apenas para acomodar as roupas à
medida que ele a despia, no que era acompanhado por ela que, de forma doce, mas
resoluta, lhe desafivelava o cinto e abria-lhe o fecho das calças. Cobertos
apenas com um mínimo de trajes que pudessem tirar depois, seguiram para o quarto,
ele a carregá-la no colo.
Então, sem pressa, ele desprendeu seu delicado sutiã
furta-cor, pondo à vista expressivos atributos que evocavam duas polpudas
mangas. E seus lábios, até então unidos aos dela, mudaram de pouso, vindo a
abocanhar os graciosos bicos que pareciam crescer em tamanho à medida que ele
prosseguia. Colocando-a de pé sobre a cama, ele a tomou pela mão, girando-a
suavemente até se defrontar com a parte posterior de seus quadris: a visão daquele
harmonioso conjunto anatômico era - como deduziu de relance - a prova viva e límpida
da existência da Criação Divina. Impelido pela força nascida da confluência das
vontades, ele passou a despi-la da única vestimenta que restara. Fê-lo com os
dentes, passo a passo, e com delicadeza ajudou-a a deitar-se na cama.
O panorama que se descortinou, contemplado aos olhos de hoje, sugeria-lhe de forma explícita um quadro que mais tarde viria a conhecer durante uma visita ao museu D’Orsay: ‘A origem do mundo’, de Gustave Coubert. Sensibilizado, ele lhe entreabriu as coxas para enaltecer quem lhe dava acolhida em tão encantadora gruta. Acarinhou-a de forma gentil, empregando para tal o órgão destinado a transmitir ao cérebro as sensações gustativas. Ante as manifestações de regozijo por ela emitidas, considerou ser hora de finalizar o prelúdio e passar para ao andamento seguinte – o Andante con moto.
Mal
ele lhe metera a espada ela pediu, quase em tom de súplica “Me chama de meu
amor!” Satisfazendo-lhe o desejo, ele recebeu em troca o mais sublime sorriso –
mais que um sorriso, um tênue riso - que revelava ao mesmo tempo gratidão e euforia. A partir daí, em afinada sintonia imprimiram
o andamento “Alegro” que evoluiria para o “Alegro com brio” em seu gran
finale.
No interlúdio, do mudo lá fora vinham juntar-se a eles apenas
os sons do arvoredo ou do chuviscar. Mas até então haveria passagens sublimes e
intensas, como quando ela pedia “Me bota no seu colo? ” ou “Me pega por trás?” – na qual ele a colocava em
posição “gato” do Yoga - além de outras tantas, que não mencionarei aqui, e que
com o tempo e a intimidade, tacitamente desenvolveram. Contudo, sempre com o
intento de regalar um ao outro e como corolário que demonstrava o quanto se
gostavam. Assim construíram um universo próprio de benquerença e reciprocidade.
Tendo o vínculo definido por afinidade mútua, não havia entre eles espaço para
monotonia e vulgaridade. Juntos aprenderam a diferença que existe entre simplesmente tocar as notas e decifrar os sinais e olhar as nuances de uma melodia para melhor interpretá-la. Afinal, como teria dito Beethoven, “Tocar uma nota errada é insignificante, mas tocar sem paixão é indesculpável”.
O momento “Me bota no seu colo? ”era dos que ela mais
gostava, pois fora ela que originalmente o solicitara. Nessa configuração
podiam realizar, em harmonia, diferentes andamentos, desde o Adagio até
o Allegro, o Vivace e até mesmo o Presto. Por permitir que ficassem tête-à-tête,
seria talvez a que melhor comunhão sensitiva - visual e táctil - proporcionava
aos dois. E ainda outorgava a ele a possibilidade de lhe aplicar raras palmadas
na bunda (espontâneas e consentidas, naturalmente). Era a que adotavam com
maior frequência, podendo-se dizer que seria a sua pièce de résistance.
A configuração “Me pega por trás”, que ela inicialmente
desconhecia, mas da qual viria a gostar e pedir, também era concorrida. Dava
ensejo a que ela exprimisse balbucios, manifestações verbais de agrado e às
vezes movimentos que oscilavam entre o oferecimento e a salvaguarda que açulavam
a animação dele. Em uma certa madrugada em que dormiam juntos, ele acordou e
notando que tinha sua espada em riste, posicionou sua amada na sobredita
configuração e principiou a enfiar-lhe a arma bainha adentro. Como não tivesse
usado de muita cerimonia, ela se lamuriou um pouco, mas logo o regalou com
receptividade, mulher dadivosa que era.
O que nela o cativara desde os primeiros dias? A
suavidade que entregava nos suas ações e palavras e que, como ele viria a
constatar mais tarde, se ampliava na delicadeza com que fazia amor. O hábito de
empunhar e apertar sua espada de manhã cedo, quando ela a sentia a postos, e
suas ternas expressões “Quero te fazer um carinho”, “Você é lindo, sabia? ”, “É
meu! ”, “Vem...vem! ”) e “Eu quero ficar assim para sempre” quando estavam se
amando, atiraram para longe dele a ideia de reparar em qualquer outra mulher,
por mais sedutora que fosse.
Frágil epifania em que eles se elevavam para a uma
atmosfera destituída de força da gravidade, libertando-se das contrariedades e
inquietações ordinárias da existência! Ao erguer assim os pés da terra
sentiam-se felizes e despreocupados – ao menos transitoriamente.
E até os dias de hoje, decorridas décadas de
distanciamento, aquelas noites encantadas vem visitar o seu imaginário. Para
revivê-las é só pular o muro do jardim....
10/08/2025