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Como a música nos toca quando crianças

A música nos leva para lugares do pensamento onde as palavras não entram. As que começamos a ouvir quando crianças ficaram perenes em nossa imaginação.

Uma das primeiras que me passaram uma ideia elementar de melodia, harmonia e ritmo foi a guarânia “Cabecinha no Ombro” interpretada pelo Duo Guarujá, que eu ouvia em 1958, quando ainda morava em Curitiba. De beleza simples e um quê sentimental, melodia, na época, adquiriu para mim uma conotação singular. 

Eu estava com meu irmão a percorrer ruas desconhecidas em companhia de uma moça que supostamente era a nossa guia. Procurávamos por nossos pais, que deviam estar na casa de alguém nas redondezas e até hoje é um mistério porque fôramos parar ali. O fato de que estávamos a caminhar por algum tempo e a incerteza de encontrá-los nos afligia cada vez mais. A certa altura, meu irmão menor, mais angustiado que eu, começou a chorar. A moça, querendo consolá-lo (ou então, parecer engraçada), entoou as estrofes que diziam: “Encosta a tua cabecinha, no meu ombro e chora/E conta logo suas mágoas todas para mim/Quem chora no meu ombro eu juro, que não vai embora/Que não vai embora, que não vai embora […]. A tática, entretanto, surtiu efeito contrário. Ante o desalento e a mensagem comovente dos versos, também eu desandei a chorar.

Quando chegamos a SP após uma viagem de trem que durou de 18 horas, atraiu minha curiosidade Cachito mio, que tocava no rádio da casa de nosso tio Adolfo, onde ficamos hospedados provisoriamente. A melodia alegre caía bem e a letra, em espanhol, expressava carinho por alguém. Ao lado da recepção que ele nos deu, aquela música, que ecoou nos meus ouvidos nos dias seguintes, representou um pano de fundo amistoso para quem acabava de chegar a um lugar distante e, à primeira vista, pouco atrativo.

Semanas depois, já em novo habitat, comecei a pesquisar programas radiofônicos no rádio de válvula e estojo de madeira, o único que tínhamos. Além dos programas de música sertaneja, eu gostava de sintonizar logo cedo a rádio Record para ouvir, apresentado por Joaquim Costa Almeida, “Bandas de todas as bandas”.  Aquelas marchas me contagiaram com sensações de júbilo e otimismo - o que servia para animar alguém com 6 anos de idade e afastado das suas referências de pessoas e lugares.

Sensações bem diferentes eu tinha com a vinheta da novela que minha mãe acompanhava no rádio, ao passar roupas. Eram os acordes iniciais da abertura do Concerto para Piano em Si bemol menor do Tchaikovski - eu os sentia carregados de drama e de uma tristeza bela e solene. Talvez, com sua arte, o compositor quisesse comunicar seus infortúnios, que não foram poucos. Foi a primeira composição clássica que conheci e talvez a primeira vez que tenha ouvido o som de uma orquestra, em que identificava instrumentos de sopro (trompa), piano e violino (hoje sei que havia também o violoncelo). 

Mas foi na casa da minha avó Julieta, no alto de Bronze, centro histórico de Porto Alegre, que comecei a ter alguma ideia da música erudita. Lá, onde ela morava com minha tia Esther e meus tios João e Raul, era o lugar idílico onde passávamos as férias de final de ano. Lá, onde éramos rodeados pela atenção e carinho de familiares e seus amigos - lembro-me da Helenita, então namorada do meu tio João, que além de eu achar bonita, com sua doçura e delicadeza tinha o dom de nos tranquilizar, porque sempre via o lado bom das coisas. Por não ter a obrigação de nos educar, eles nos davam o que não podíamos ter em casa. Era ótimo, mas o resultado final era que ficávamos “‘estragados”’, e ao voltar para casa em SP tínhamos que voltar a “entrar nos eixos”, como minha mãe dizia.

A casa era ampla, com um grande jardim nos fundos, ladeado por canteiros com rosas, margaridas, lírios, uma figueira, mamoeiros (entre as plantas que eu me lembro) e ao final, um galinheiro em que raramente entrávamos, por medo de ser bicados. No hall de entrada uma chapeleira dava boas-vindas. Provida de espelho, ganchos para pendurar sobretudos e base rebaixada para acomodar guarda chuvas, era uma peça distinta. Uma escada comprida, com passadeira que às vezes saía do lugar, dava acesso ao andar de cima e suas várias dependências.

Na sala, em um canto próximo às duas grandes janelas que se abriam para o jardim, ficava a rádio vitrola – um móvel de madeira escura, alto e de ar sisudo. Aquilo era uma grande novidade, pois o dispositivo mais próximo que tínhamos em casa era o rádio de válvulas. Remexendo no seu interior vi um box com vários LPs e um encarte explicativo das obras - era a coleção Festival de Música Clássica Ligeira, organizada pelas Seleções do Reader’s Digest. Devidamente orientado, coloquei um disco no prato, ajustei o seletor para rodar em 33 rpm e o comando para acionamento automático do braço (acho que não fiz tudo isso da primeira vez; é provável que alguém tenha feito para mim) e, com o encarte nas mãos, sentei-me próximo dos alto falantes para ouvir. 

À medida que lia os títulos e a agulha percorria as diferentes faixas dos discos fui conhecendo as composições. Cavalaria ligeira (Leichte Kavallerie, de Franz von Suppé) e os movimentos finais das aberturas de Guilherme Tell, de Gioachino Rossini, adotada no seriado de TV The Lone Ranger (“Hi-yo, Silver!”) – por aqui batizado deZorro” - e de Orfeu no inferno (Offenbach), entre outras, despertaram meu interesse nas semanas seguintes de minha exploração. Como eu era pequeno, hoje não saberia definir exatamente o que sentia ao ouvi-las – acho que de início deslumbramento e depois entusiasmo. Eram fáceis de assimilar, mas não havia ali nada frugal. Eu adentrava em um mundo imaginário de protagonistas heroicos, que travavam batalhas duras para triunfar bravamente no final.  Saía dali quando minha avó me chamava para alguma refeição.

Interessei-me igualmente por algumas músicas populares, cantadas, que contavam uma história de amor, alegria ou desilusão – os LPs de Francisco Egydio; Hebe Camargo (‘Quem é?’) e Edith Veiga (‘Faz-me rir’) que meu tio João comprava ou ganhava. O que mais me agradava era o do Francisco Egydio (Creio em ti, Escondido, Eu canto amore) - devo ter decorado todas as letras; quando eu não “vivia” o enredo, ao menos procurava entender seus sentimentos.

Certa tarde recebemos a visita de alguns conhecidos que presentearam minha avó com um compacto duplo. Pareciam animados e faziam comentários elogiosos sobre o disco - era a trilha sonora do filme “O Cangaceiro” (premiado no Festival de Cannes) interpretada por Zé do Norte e Vanja Orico.  Quando eles se foram, pus o disco para rodar (45 rpm) repetidas vezes. As canções ‘‘Mulher Rendeira’, ‘Lua Bonita’, ‘Sodade, meu bem sodade’ e ‘Meu Pinhão' me agradaram desde a primeira vez:

 “Lua bonita, se ‘tu não fosse’ casada eu preparava uma escada pra ir no céu te beijar/e se colasse teu frio com meu calor, pedia a Nosso Senhor para contigo casar”. Sua beleza rudimentar, representa para mim a essência do folclore nordestino “raiz”.  

De 1959 ouvi “A noite do meu bem”, canção criada e gravada por Dolores Duran – uma melodia sublime e versos que denotavam uma promessa romântica não plenamente cumprida (a mensagem cética, no final, passava tristeza e resignação), e a paz de ‘O Barquinho’ (Menescal e Boscoli) na voz de Maysa. E em 1962 Telstar, composta pelo engenheiro de som Joe Meek e interpretada por The Tornados. Se alguma música instrumental tinha o poder de evocar enlevo e confiança em um futuro promissor, era Telstar. A mesma confiança eu sentia ao ouvir a valsa ‘Criança Feliz’, cantada por Francisco Alves e o coro das crianças da Casa de Lázaro em cuja abertura a locutora declamava: “Brincando marcha o menino de hoje, lutando marchará o menino de amanhã. Crianças despreocupadas desse Brasil-Menino cujas glórias hão de colher os homens grandes que dominarão o Brasil-Gigante; esse Brasil grandioso que eu canto, que as crianças da Casa de Lázaro, felizes, cantarão numa esperança de vitórias e de alegrias”. Como vemos, vivia-se em um país diferente do de hoje. 

Gostava de ouvir a música italiana romântica da década de 1960. Porque além da estrutura musical simples e ao mesmo tempo refinada e da qualidade dos intérpretes, trazia em suas letras a saudade de amores remotos ou de paixões presentes, em geral idealizadas. Gostava dos arranjos logo do primeiro compasso. Gostava das cordas, trompa (às vezes piano e flauta) e do coral de vozes – a andar tristes ou alegres, mas sempre em harmonia, de mãos dadas.

Annamaria abria com o eco do seu nome pronunciado ao longe por vozes masculinas; depois, um coro feminino, celestial, e o som agudo de sinos misturado ao dos violinos precediam a voz do Sergio Endrigo, tristemente conformado a relembrar um amor antigo. Nela, eu via o arquétipo da suavidade feminina. Até hoje me emociono quando a ouço - uma emoção plácida – mas não vou além dos primeiros compassos, pois isso a tornaria banal de tanto ouvir.

Uma sensação aproximada eu tinha com Al Di Là (Emilio Pericoli), tema do filme Rome adventure (Candelabro italiano), que louvava um amor presente. Assim eu sentia Legata a Un Granello Di Sabbia, em que os violinos abrem espaço para voz carinhosa de Nico Fidenco, secundada por guitarra e coro, e em certo momento, um xilofone. É deste instrumento o primeiro toque da abertura de Sapore di sale, secundado por percussão e baixo, violoncelo, violinos e uma surpresa – o toque agudo e sagaz de um piano. Só então entra Gino Paoli, escoltado pelo som da trompa.

Em uma linha mais solta, Nel Blu Dipinto di Blu* (Volare), em que Domenico Modugno, como um Ícaro apaixonado passeava feliz pelo céu com sua amada - em sonho. Hoje, ao ver a forma como ele a interpretou no The Ed Sullivan Show, até eu tenho vontade de voar. Nunca vi atuação tão empolgante, seja desta ou de qualquer outra música. Ao final, o Ed Sullivan revelava uma razão especial para justificar aquela performance: o filho recém-nascido de Modugno. 

De outro lado, a voz resoluta de Michele Maisano -  surgindo como o motor de uma Ferrari - à qual o coro, o ritmo e a orquestração se uniam para clamar: Se mi vuoi lasciare, dimmi almeno perchè; Io non so capire perchè tu vuoi fuggire da me, ou Cosa vuoi da me…

Da música romântica francesa, gostava em particular daquela que começa com as estrofes:

La mer/Qu'on voit danser le long des golfes clairs/A des reflets d'argent

La mer/Des reflets changeants/ Sous la pluie

Dizem que Charles Trenet escreveu La mer durante uma viagem de trem que fez pela costa mediterrânea francesa em 1943. Os versos são um hino ao mar, singelo e inspirador. Mas a melodia é a sua principal virtude. Para compô-la ele teve a ajuda do pianista Leo Chauliac. Gosto de três versões: a cantada pelo próprio poeta (de início contido, mas “soltando a franga” na última estrofe), a de Juliette Gréco (mais sóbria e solene em sua imanente nostalgia) e a da Orquestra do Ray Conniff. O maestro, conhecido por seus arranjos “easy listening”, reunia um coro de vozes masculinas e femininas, vários tipos de sopros - trombones, trompas, saxofone baixo, trompetes, clarinetes e saxofones altos, piano e até uma harpa. Sob sua regência, La mer ganhou matizes vibrantes e de grandiosidade. Esta foi a primeira versão que ouvi e a que mais me emocionou. 

Love me, please love me é uma canção que tocava bastante (ou eu é que tinha os ouvidos atentos para ela?) no rádio em 1966. Eu não entendia bem a letra em Francês, mas entendia muito bem o amor não correspondido cantado por Michel Polnareff, e sentia grande pena do protagonista, embora jamais tivesse vivido tal situação (e menos ainda a de um amante correspondido). Não sei se era pela melodia, volume e entonação da voz do Polnareff - que variava da mansidão ao desespero, ou pela introdução que ele tocava no piano - notas em escala decrescente que fluíam rapidamente seguidas de trechos furtivos, hesitantes, e logo voltando a rolar de modo marcante e desenvolto. O caso é que essa música me comovia.

É curioso eu me referir a coisas abstratas como amor, saudade, tristeza, júbilo, e paixão por uma mulher como dotes essenciais da música cantada. O que sabia eu do amor naquela época? Tudo isso aquelas canções me passavam. É possível que os amores ali glorificados fossem apenas invenções poéticas de seus autores - frutos de devaneio e não de uma experiência real. Mas de um jeito ou de outro, eram revelados da forma mais bela possível, idealizada. E eu representava tais sentimentos como algo fascinante, porque o veículo que usavam para expressá-las - a arte musical - é intrinsecamente fascinante.  E nada melhor para sonhar, mesmo quando se é menino, do que um amor idealizado.

Sim, porque desde pouca idade nós fazemos isso. Recordo-me de uma passagem quando eu, aos 7 anos, recém-admitido em uma classe de segundo ano primário que estava já em andamento havia dois meses, não conseguia fazer exercícios passados pela professora sobre assuntos que desconhecia. Ao notar minha preocupação, a colega de uma carteira próxima à veio sentar-se junto e passou a me explicar como resolvê-los. Das feições do seu rosto eu me esqueci, mas a expressão era agradável, disposta e acolhedora. Nosso contato foi breve, mas cristalizou-se ali um dos paradigmas da índole feminina. Hoje penso que gostaria de ter associado a ela uma música, mas com a mudança de domicílio e de escola que viria, eu não a vi mais.  

Veio mais tarde a despertar minha atenção uma menina clara, de cabelos pretos curtos e certo encanto em seus olhos azuis, que às vezes sentava na carteira à minha frente na classe do terceiro ano primário. Tínhamos ambos 8 anos. Conversávamos, eu a achava bonita e quando espontaneamente lhe dirigi um gracejo, ela devolveu a provocação, chamando-me de gracioso. Vi ali um ligeiro ar de censura e penso que não evoluímos além daquela prosa. Em consequência perdi o ensejo de associá-la a uma música, mesmo porque na época, meu horizonte neste quesito era bem restrito.

Houve ainda outra, no ginasial, uma morena clara e de cabelos castanhos à altura dos ombros, naturalmente altiva, cujo rosto tinha uma beleza bem delineada, serena e gentil. Seu nome era, sem a grafia italiana, o título da mencionada canção do Sergio Endrigo.

Annamaria

Annamaria/Tu non vuoi ricordare

Le nostre dolci sere/Ed i baci che mi hai dato

Ora viviamo/In sogni separati

Ma quel che è stato è stato/Non importa se è finita

Annamaria/Sei passata nel mio cielo

Come una rondine leggera (como uma andorinha ligeira)

E l'inverno è già tornato/Ma senza te

Annamaria/Di te mi resterà

Solo il tuo dolce nome/Il tuo nome/Annamaria

Nunca trocamos uma palavra. E é provável que, se vista de perto, ela não correspondesse à ideia do sublime feminino que a canção me transmitia. Foi melhor assim, que ela restasse confinada em meus domínios platônicos. Então, como aconteceu com as demais, sua imagem permanece intocada, tal como eu concebi de início. Felizmente, porque não sei como elas estariam hoje.

Velhotas sacudidas ou matronas obesas?

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A Dazzling Black Blue Friday*

Pulando do sol nascente para o poente (e não por isso menos belo e interessante) na última noite fui abordado por uma moça enquanto fazia compras no supermercado. Sendo a abertura do Black Friday, um movimento anormalmente grande de pessoas a empurrar e encher seus carrinhos de compras atrapalhava minhas andanças em busca de produtos; volta e meia tinha que ceder espaço ou pedir licença para passar com um carrinho de dimensões avantajadas, o único que sobrara.

Eu acabara de pegar alguns pêssegos (bons, mas não tão baratos) e começava a pesquisar no setor de peixes quando ouvi uma voz feminina bem-disposta: “senhor, acho que esses pêssegos são seus - o senhor os deixou cair”.

Virei-me e a vi, com suas mãos a me mostrar as frutas que acabara de apanhar do chão. Minha desatenção não me surpreendeu, porque ultimamente tenho deixado de notar coisas. A surpresa foi provocada pela atitude e mais além: pelas feições sorridentes da dona. Eu vi, em um rosto jovem e de expressão cortês, os cabelos castanho-claros lisos e um tanto longos e os olhos - verdes ou azuis - que cintilavam no conjunto. Deveria estar naquela casa da vida em que atingimos a plenitude, mas ainda expressamos jovialidade. Usava um vestido de cores, solto e amplo, dos que as gordinhas usam para esconder os excessos. Ao constatar ser este o caso, de imediato considerei-o um detalhe irrelevante, que não afetava a pintura geral, e talvez a tornasse até mais sedutora.

Ao notar minha atrapalhação para colocar os pêssegos de volta ao saco plástico - e  ao carrinho de compartimentos diferentes - ela prosseguiu: “o senhor quer que eu lhe ajude? ”, oferta que eu orgulhosamente declinei. Agradeci por sua gentileza e quando ela se afastou, parcialmente refeito, tirei os pacotes de peixe do freezer e os coloquei no carrinho. Ao voltar, avistei-a a conversar animadamente com suas amigas. Ela deve ter percebido minha curiosidade espontânea, pois devolveu o olhar, ainda que de soslaio. Mas eu não mantive o meu.

Olhando retrospectivamente, eu deveria ter perguntado o seu nome e me apresentado. Quem sabe, movido por um enlevo tolo, beijasse a mão que resgatou os pêssegos. Mas foi tudo rápido e no meu estado de admiração, tudo o que fiz foi agradecer sua gentileza com uma efusividade formal.

‘O homem deixou cair umas frutas do carrinho; eu posso apenas avisá-lo, mas vou apanhá-las e entregar para ele’, ela deve ter pensado.

As circunstâncias foram banais, mas o que fez a diferença? Acho que o sentido diverso que se deu a elas, os pormenores, as cores. E estes temperos estão no seio das individualidades humanas, embora nem todos sejamos agraciados para distinguir ou fazer-lhes uso.

Um acontecimento corriqueiro levou a uma atitude gentil. São os imprevistos que acontecem e nos encantam. Vamos pensar assim.

Ela me pareceu bonita e a partir do seu gesto eu projetei uma imagem ainda mais bonita. Sei que pela lógica não a encontrarei de novo e se isso acontecer, provavelmente não a reconhecerei. Então, vou lhe dedicar uma música. Mas qual? Talvez, aquela que diz assim:

 

*Volare, oh oh

Cantare, oh oh oh oh

Nel blu dipinto di blu

Felice di stare lassù

[…]

Volare oh oh/cantare oh oh oh oh

nel blu degli occhi tuoi blu,

felice di stare quaggiù,

nel blu degli occhi tuoi blu [...]


E depois, sairei voando...

 

Nov./2025

Viagem a Praga

Chegara o dia de voar para Praga, onde aconteceria o ESPEN 2025. Considerando a fase atual, eu não estava motivado, porém, por menos que se esteja, há sempre uma expectativa em relação a uma viagem como essa - boa ou ruim, e não se sabe qual delas será concretizada. 

Peguei o ônibus em Congonhas, que me deixou em GRU com antecedência de mais de 4h. Mesmo assim, a fila para o despacho de bagagem nos guichês da Swiss já era grande. Cumprida essa etapa, passei pelos controles de passaporte e de Raios X, onde fui “sorteado” para uma inspeção mais detalhada; ao sair de lá, apalpei os bolsos para me certificar que estavam no lugar passaporte e carteira, operação que viria a repetir mais vezes ao longo da viagem.  

Segui então para uma regalia que eu queria experimentar: o lounge VIP – VISA Airport Companion. Após mais um pouco de fila e burocracia digital no celular (tive que criar outra senha), a moça detrás do balcão, anunciou, com ligeira afetação solene, que eu era bem-vindo. Com uma moderada sensação de triunfo (que duraria pouco) entrei no bufê, onde havia gente circulando e uma certa efervescência. Todos já estavam acomodados em suas mesas, a comer e conversar ruidosamente. Perguntei a um garçom e ele indicou onde eu poderia me servir. A comida era posta em bancadas compridas e notei que certas ‘iguarias’, conforme o interesse específico da freguesia, logo desapareciam. Não tendo avistado mesas ou nichos individuais desocupados, instalei-me em uma mesa estreita, comprida e com bancos dos dois lados. O cenário ali não se ajustava com a afetação do nome e se eu pensasse em um lugar sossegado, não seria aquele. Para se ter ideia do movimento, quando saí em busca de mais algum comestível para completar o meu repasto - que naquelas alturas tinha macarrão como o prato chefe - ao voltar à mesa um cara já havia tomado o meu lugar. Porém, ao perceber que eu estava ocupando aquele espaço, ele amistosamente sentou-se do lado oposto. A julgar pelo tamanho da amostra que lá se empanturrava, imagino haver um bom número de VIPs no país...

Deixando o lounge, procurei pelo portão de embarque para Zürich. Ao chegar – eu tinha bastante tempo - acomodei-me e puxei o livro ‘Olhai os lírios do campo’, que serviu para iniciar contato com uma senhora de Ribeirão Preto que ia à Suíça visitar os filhos que lá trabalham. Nossa prosa fluiu e imaginei que isso seria um bom augúrio. Às vezes é agradável conversar com pessoas de idade provecta como a nossa.  A propósito, uma das vantagens de se estar na fase de older adult - termo do qual tomei conhecimento ao ler no Am J Clin Nutr um recente artigo sobre sarcopenia - é a de se poder conversar com pessoas da mesma geração e ser compreendido. Dada a maior vivência, sempre temos algo a contar e elas também (salvo se forem alienadas e sua sabedoria não tenha se convertido em teimosia). Da nossa parte, se não lembrarmos exatamente de uma passagem antiga, sempre é possível inventar, o que frequentemente torna a versão de momento mais interessante. É também mais fácil de alinhar as perspectivas. 

Poucas situações são tão decepcionantes em uma aula ou diálogo, quando ao mencionamos, por exemplo, Nelson Rodrigues ou Federico Fellini para ilustrar algum conceito abstrato, o interlocutor mantém a expressão impassível ou então sorri acanhado, assumindo saber quem foi um ou outro (o que é pior, pois perdemos a chance de esclarecer), mandando por água abaixo o nosso esforço de argumentação. É como perder a sintonia de uma rádio – só que além do ruído de estática, temos aqui o ruído de comunicação. Isso supostamente é mais difícil de acontecer quando dialogarmos com alguém nascido há mais tempo, também porque o sujeito provavelmente não recebeu a influência da mídia digital e da deterioração da linguagem escrita sobre seu desenvolvimento intelectual. Maryanne Wolf, autora de ‘O cérebro no mundo digital’ e ‘O cérebro do leitor”, aponta os possíveis efeitos da tendência cultural para a homogeneização da linguagem: desde o estreitamento das escolhas lexicais para se produzir manuscritos mais breves até a menor complexidade sintática e o menor uso da linguagem figurada – dois recursos que exigem um conhecimento de fundo que parece estar hoje em falta. 

Voltando aos older adults, a outra vantagem é nos confortarmos com a solidariedade – o tácito entendimento de que se estamos ferrados, menos mal se estamos ferrados juntos. Admito, contudo, que quando menino ou jovem, era natural que preferisse conversar com os da minha idade. Os adultos, com suas ideias prontas, eram chatos ou seus temas, em geral, não me interessavam. Hoje concluo que, embora haja coisas maravilhosas que se pode fazer ou imaginar em silêncio (e em certos casos é melhor que seja assim...), de um modo ou de outro, a conversa é uma das coisas boas que ainda não tiraram da gente *(ver nota ao final do texto). 

Embarque tranquilo, retribui à dita senhora os votos de boa viagem e tomei meu lugar no avião. Constatei que existia um incômodo estreitamento do espaço lateral do assento que, no entanto, era bem amplo em relação ao assento da frente. Seria melhor ter escolhido a poltrona do meio ou da janela. Nessas viagens, cujos poucos momentos positivos são as sorridentes boas-vindas na entrada e as despedidas que nos dão os tripulantes ao desembarcarmos, em geral não penso na probabilidade de acidentes aeronáuticos. O que receio é topar com seres que não foram bem aquinhoados no quesito propriocepção, ou são apenas chatos. Isso se aplica a quem vai no assento do lado, da frente ou de trás e também aos que, menosprezando a mochila que tão cuidadosamente acomodamos no bagageiro superior, esmagam-na ao colocar por cima uma mala de material rígido. Ao menos nesta última situação, tenho sido categórico em chamar o incauto à razão, mas nem sempre com bom resultado, pois algum comissário acaba aparecendo para ‘ajeitar’ e não ajeita nada – apenas fecha o compartimento. 

Enquanto eu me distraia com tais pensamentos, chega a minha companhia de fileira -sem espalhafato ela e senta e começa a ler um livro digital. De novo entrou em cena o livro do Érico Veríssimo, que foi o trigger para um início de conversa. Ela lia a história de um alpinista e do alpinista passamos ao Amir Klink, e daí para outros assuntos. Surpreendeu-nos o fato de sermos colegas de profissão - ela se formara e fizera residência de Pediatria na USP, e de Psiquiatria no HSPE. Tem consultório psiquiátrico em Ulm, onde vive com o marido alemão e dois filhos. Suas feições e o jeito de se expressar lembravam a Gre, que conheci em 1983 no Curso de Saúde Materno Infantil na Faculdade de Saúde Pública da USP e que viria a ser minha boa colega no Hospital Pérola Byington. Fôra a SP para se submeter a uma cirurgia - disse ser o atendimento daqui melhor, e que os médicos alemães não dão muita bola para as queixas dos pacientes. Contou como fora parar em Ulm, sobre a família  e um pouco sobre como funciona a medicina na Alemanha. 

O serviço de bordo era feito por dois comissários de cavanhaque e fenótipo árabe: um caricato e loquaz em excesso e o outro, a quem pedi um garfo, deu-mo segurando-o pelo trinchador (higiene não era o seu forte). Pelo menos, a comida estava satisfatória. Após o pouso, continuamos conversando e no saguão da área de desembarque do aeroporto de Zürich despedi-me da colega, que passou seu número de telefone para eventual contato. Ela faria conexão para Munique, onde o marido e os filhos a estariam esperando. 

A sala de embarque da conexão para Praga, velha conhecida, estava quase repleta, com passageiros que esperavam seus voos. O nosso saiu com um pouco de atraso e ainda permanecemos no ônibus por uns 10’, pois o avião ainda não estava pronto. A viagem foi agradável; tive como colegas de poltrona brasileiros que iam para o congresso: um ‘nutrólogo’ do HC e uma de BH, os dois bem amistosos. 

No desembarque em Praga, a preocupação de sempre com o extravio da mala, que finalmente chegou. Na saída, avistei o motorista do Prague Airport Transfers segurando uma placa com meu nome. Com ele, estava um casal de idosos. Saímos, atravessamos a rua e entramos em uma VW Passat Variant de cor preta, que nos levaria aos hotéis. Como parte do pacote, recebemos uma garrafa d’agua, um guia ilustrado da cidade e um tour a pé pela cidade. O casal desceu primeiro, em um hotel aparentemente luxuoso. O trânsito estava lento por ser sexta feira, o que nos fez demorar aproximadamente 1h do aeroporto até o Avenue Legerova 19. 

Recepcionista loira, magrinha, bonita e afável. Quarto e banheiro com espaços suficientes, tudo bem funcional. Compenetrando-me da próxima missão a cumprir, tirei as roupas da mala, fechei-a e desci à recepção para me informar sobre como ir ao supermercado mais próximo. Ela pega um mapa e me explica o itinerário. Não foi possível achar, porque o caminho passava por um parque e havia diferentes vias de trânsito para confundir. Volto às proximidades do hotel e pergunto a um transeunte que, com paciência, indica uma direção em que teria que descer escadas.  Após a escadaria, saio em uma avenida; não sabendo qual o sentido tomar viro à esquerda, ando uns 100 m e decido perguntar a uma senhora: o Billa ficava no sentido oposto, a uns 400m dali. A unidade não era lá muito ampla, mas tinha um pouco de tudo. Comprei sanduíche, dois pães pequenos, queijo camembert, chocolate 70% de produção própria, amêndoas, cramberries desidratadas e uma garrafa d’água: 395 CZK. De volta ao hotel, fiz a minha farofa, tomei banho, assisti um pouco de TV (lixo) e fui dormir. 

No sábado o café abriu às 7h30. Havia uma pequena variedade de pratos para quem come bastante de manhã, o que não me interessou - fiquei no pão branco (integral só em fatias e industrializado), queijo, café com leite e maçã, que vinha cortada em pedaços (às vezes melancia). A nota negativa foram os vídeos “musicais” (força de expressão) no monitor de TV do refeitório a surrar os ouvidos e o espírito dos hóspedes. Contudo, a hospedagem no Avenue Legerova 19 era bastante satisfatória e a localização era próxima a facilidades, a poucas quadras da estação de metrô I.P. Pavlova. Além da loirinha simpática e prestativa da recepção, chuveiro bom, frigobar e equipamento para cozinhar pequenas refeições tornavam o lugar confortável. O único problema ocorreu por conta do fraco isolamento acústico – eventualmente à noite podia-se ouvir passos dos hóspedes do andar de cima e gente falando alto no corredor. 

O próximo ‘desafio’ era achar o caminho para o Prague Congress Centre. Eu sabia a direção, mas não o caminho a tomar, porque a Legerova avenue acaba em um parque ladeado por um viaduto e com duas vias de trânsito rápido. Entrei no parque, onde um ou outro transeunte apressado passeava com o cachorro. Achei que eles não me dariam atenção. Instantes depois, ao olhar para trás vi um chinês, que passeava devagar e sem cachorro; perguntei e ele, olhando no aplicativo me informou, sorrindo, o caminho: entrar no viaduto e seguir adiante uns 700 m. Comecei a marcha e no meio do caminho enxerguei ao longe o que parecia ser o prédio, mas era do lado oposto da avenida. Ao término do viaduto descia-se por uma escada até um hotel e uma passagem parecia dar lá. Tendo encontrado alguns árabes que aparentemente pretendiam ir ao mesmo lugar, comigo na dianteira seguimos mais ou menos juntos. Daí foi fácil até chegarmos à estação do metrô Vysehrad, bem ao lado do congresso. 

No saguão, enquanto imprimia o código de barras necessário para receber o crachá, dei com a Fe, que recebia instruções da recepcionista. Não nos deram bolsa e cadernos, apenas transporte urbano durante o congresso. Para isso teríamos que baixar um aplicativo e digitar códigos complicados - tudo digital e nada em papel. Naturalmente conseguimos acessar o vale de transporte com o auxílio de outra recepcionista – eficiente e, para nossa sorte, era brasileira, de Curitiba. A Fe esquecera seu pôster no avião e iria até um determinado lugar na cidade para imprimi-lo.  Eu participaria do tour fornecido pelo transfer, às 11h, devendo estar de volta às 15h para assistir à palestra do Sobotka. 

Rumamos então para o metrô; Fe desceu na estação seguinte (I.P. Pavlova) e eu faria baldeação na estação Muzeum para chegar à estação Starometská, na linha verde. Saindo da estação peguei a rua Kaprova (muita atenção em memorizar os nomes das ruas e as referências para não se perder) e cheguei à praça da cidade velha de onde vi, mais ao fundo, uma igreja bonita; continuei até dar com o relógio astronômico diante do qual uma horda de gente começava a se apinhar para ver o movimento das estátuas na hora cheia. 



Saindo dali fui fazer um reconhecimento pelo lugar de onde sairia o tour (esquina com a rua Paris – onde ficavam as lojas de griffe) e preventivamente comprei algum carboidrato em uma padaria próxima. Chegando ao ponto de encontro avistei a guia, baixinha, de meia idade (ela disse que era de 1970) segurando um guarda-chuvas vermelho (conforme as instruções do guia ilustrado). Ela me disse haver tempo para, caso eu quisesse, assistir ao movimento das figuras do relógio. Fui e quando voltei estavam com ela dois casais de sêniores, sendo um deles de chineses americanos. Partimos, ela sempre animada. Mostrou-nos monumentos de Jan Huss - precursor do luteranismo tcheco, uma igreja enrustida, mas de interior muito bonito, onde era celebrada missa alusiva a um evento histórico. Percorremos a cidade velha e a cidade nova, vimos o teatro onde se deu a estreia da ópera Don Giovanni de WA Mozart e conhecemos o bairro judeu (o cemitério estava fechado). Acho que ela se aprazia em falar sobre as desgraças que ocorreram em Praga – a queima na fogueira de Jan Huss, considerado herético por seus adversários; brigas entre católicos e protestantes (para variar). Paramos em frente a uma construção antiga (igreja?), diante da qual ocorreram execuções de pessoas durante várias horas – ela mostrou inscrições alusivas no calçamento. 
Além das referidas tragédias, nossa guia mencionou as famosas defenestrações de Praga, nas quais (acho que foram dois episódios) alguns membros do governo foram lançados pela janela do Castelo de Praga. Talvez fizesse algum bem para o país reproduzir tal ação em alguns dos que ocupam os edifícios da praça dos três poderes. Mostrou-nos também o monumento que representa a autoimolação de Jan Palach em protesto contra a invasão dos comunistas soviéticos, cujos tanques adentraram Praga em 1969, e outro que representava a dor sofrida por sua mãe. Ambos os monumentos são - disse a guia - de arquitetura moderna e gosto estético duvidoso, com o que concordamos. Mais andança e paramos em uma ponte de onde se via Castelo de Praga. Aqui o casal de chineses se despediu; atravessamos a ponte mais o outro casal e chegamos a um jardim bonito e aprazível. Ela continuava a falar, desta vez sobre obras de arte que foram surrupiadas pelos suecos em uma guerra com os tchecos. 


 Eu teria que voltar a tempo para assistir à aula do Sobotka (Refeeding Syndrome) às 15h; a guia me dissera que o tour se encerraria tranquilamente por volta das 14h15, mas continuava a nos mostrar lugares e a falar. Sem fazer menção de parar, ela seguia cada vez mais para o interior do jardim, que possivelmente seria um caminho para se chegar ao castelo. Enfim sentou-se em um banco, dizendo estar cansada. Foi a deixa para eu agradecer, me despedir e começar a driblar grupamentos de turistas rumo à estação do metrô próxima à entrada do jardim - Malostranská - e dali até a Muzeum, de onde fiz a baldeação para a linha vermelha até Vyserhad – ao lado do Congress Center, onde pude assistir às aulas sobre Refeeding Syndrome.

De manhã e à tarde, a organização do congresso oferecia nos intervalos um bom serviço de bufê. O problema era conseguir chegar a tempo, pois a circulação era lenta (aprox. 4.700 inscritos). Com o tempo ficamos mais espertos - Fe e eu preferíamos os lugares mais afastados, nas extremidades, onde havia menos comensais e maior chance de achar mesas desocupadas.  
Quando da visita à cidade velha eu vira o anúncio na Igreja São Nicolau, de que às 17h haveria ali um concerto e à tarde segui para lá. A apresentação – dois violinistas e um pianista e organista - foi bonita, terminando pontualmente às 18h. Voltei rapidamente para o congresso, a tempo de assistir à aula do Prof. Lubos Sobotka - grande decano da área de metabolismo e nutrição - como parte da cerimônia de abertura. Não houve apresentação musical, mas a aula do Sobotka - sobre metabolismo e a evolução das espécies - terminou de modo emocionante, ao som de O Moldava de Smetana. Saímos um pouco antes do término da cerimônia de abertura, para evitar muita concorrência para acessar os comes e bebes.  
Voltando ao congresso na manhã seguinte, encontrei o Sobotka na escada rolante de acesso aos salões e lhe disse: “The best conference I’ve ever seen”, ao que ele segurou o meu braço, respondeu de modo humilde e sem afetação: ‘Thank you very much’ e seguiu célere, levando o seu poster debaixo do braço. 

À tarde, uma surpresa:  encontramos com a Ju, que está trabalhando em uma empresa de fórmulas lácteas em Londres. Como sempre tranquila, estava com uns quilinhos a mais e parecia satisfeita. Sando do congresso, pesquisei lojas de cristais - uma delas era famosa, fina, e naturalmente com os preços compatíveis com tais atributos. Decidi ir à outra casa sugerida pelo guia ilustrado onde, atendido por uma chinesa gentil e de formosos contornos, comprei dois cálices pequenos para repor os que eu quebrara em casa ao longo do tempo. Não me lembro se fui ao Bageterie Boulevard, mas por conta destes afazeres, acabei não indo jantar com Fe e esposo no restaurante U Pravdu. 
No dia seguinte, segunda-feira, saí cedo para ver a escultura Kafka Rotating Head antes de ir para o congresso. Cheguei no momento exato em que ela começava a se movimentar. Esta foi a única atração que pude apreciar sem estar acompanhado de uma ‘galera’ (quando eu estava saindo chegou uma oriental, mas ela teria que esperar, pois chegou na hora em que a cabeça estava em repouso. 


Eu procurava assistir às aulas que havia pré-selecionado; algumas eram simultâneas e era preciso decidir. Além do Sobotka, vários professores - Mete Berger, Philip Calder, Steven Heymsfield, Jeppesen, van Zanten, e outros nomes conhecidos na literatura formaram a base da boa qualidade científica do evento. Até o Loris Pironi com sua burocrática figura de guarda-livros antigo (só falta a viseira na testa) deu uma aula razoável, embora articulando seu habitual Inglês de acento italiano de forma insossa e protocolar. Não perdi tempo em assistir as aulas da seção pediátrica, cujos palestrantes provavelmente foram escolhidos por critério político. A Fe, que se aventurou, disse-me ter saído da sala a lastimar a qualidade da exposição. À tarde, combinei com ela e Ju de jantarmos naquela noite, em um restaurante que pesquisamos na internet. Haveria mais um concerto na Catedral de São Clemente, com um número de músicos maior, que assistiríamos antes do jantar. 

Chegando à catedral 1h mais cedo, ciscamos um pouco na Ponte Carlos – paisagem lindíssima - em frente à igreja. Aquela mudança de ambiente era bem-vinda e oportuna - não pensar em compromissos ainda que por breve tempo, trocar ideias com colegas de trabalho fora da rotina profissional e a promessa de ver coisas diferentes em um lugar tão bonito... 



Entramos na igreja e acomodamo-nos na quarta fileira de bancos. Os músicos eram bons e o concerto foi bonito – três violinos, um violoncelo, um contrabaixo e o órgão soaram peças bem conhecidas. O jantar nem tanto, pois a carne do goulash era entremeada por um pouco de gordura (dizem que é assim mesmo). Combinamos de tomar sorvete na Amorino, ali perto. Pagamos a conta e eu disse que iria rapidamente ao banheiro. Ao voltar (e eu fui mesmo rápido) estranhei, pois não vi ninguém à mesa, ou melhor, uma pessoa apenas - um homem de meia idade e de semblante sério e indiferente. Julgando que estivessem a me esperar à saída do restaurante, fui até lá, olhei em volta e passei pelo lado de fora à altura onde ficava a mesa – porém lá estava o mesmo homem, impassível. Mais uma vistoria no lado de dentro, voltei à rua e ao passar de novo pela janela o homem não estava mais lá. Intrigado, resolvi ir para a praça na esperança de encontrá-los, mas sem sucesso. Então entrei na Amorino, pedi o sorvete e fui me sentar do lado de fora. 
Decorridos poucos minutos, julgando ter ouvido ao longe algum alvoroço, olhei em direção à praça, onde avistei Fe, o esposo e Ju. Acenei para eles, que vieram. O que teria acontecido? Elas tinham ido ao banheiro quase no mesmo momento que eu, permanecendo na mesa apenas o cônjuge da Fe, a quem não reconheci de longe quando voltei. Com o retorno delas, como eu não aparecesse, ele foi ao banheiro me procurar. Não sei se não o reconheci por ter olhado de relance ou pelo fato de ele estar sorridente e descontraído durante o jantar – na verdade todos estávamos - não combinasse com o visual sério do cara que vi à mesa quando voltei do banheiro. Achei o fato estranho e preocupante, pois embora eu não guarde os nomes das pessoas, em geral tenho boa lembrança das fisionomias. 


Era a última manhã do congresso - assisti algumas aulas e saí por volta das 10h em busca de uma livraria, no intento de encontrar uma biografia do Beethoven. Para ir até a Shakespeare eu deveria descer na estação Malostranská; já do lado de fora, perguntei a uma mulher rechonchuda que, com cara de bons bofes e ar de quem sabe o que diz, indicou que eu deveria virar à esquerda. Só que ela estava errada (e olhe que quando eu perguntei novamente ela confirmou que o sentido era mesmo para a esquerda). Tendo caminhado por uns 10’ e suspeitando que aquele não era o caminho, recorri a uma senhora de meia idade e aspecto confiável, que gentilmente me acompanhou na direção ao sentido oposto, que era à direita da estação do metrô. Percorri algumas quadras e avistei a livraria: uma decepção – sobre música, só biografias de artistas contemporâneos e do gênero pop. Voltando, da estação Malostranská peguei o metrô e desci na estação Musek. Com a ajuda de transeuntes, percorrendo as redondezas consegui chegar a uma livraria - mas nada. Decidi então comer no Bageterie Boulevard (por 193 CZK). Depois fui até uma feira livre onde comprei uma carteira de couro por aproximadamente 600 CZK (que dei para o Bernardo). 






Voltando ao metrô, desci na Muzeum e entrei em outra livraria importante, também sem sucesso. No outro lado da rua ficava a Luxor, a maior rede entre as livrarias e papelarias de Praga. Também não tinham a biografia do Beethoven, mas acabei gastando algum dinheiro – uma caneta tinteiro Parker que achei bonita e não pensei muito antes de comprar (1.700 CZK) e dois cadernos de papel macio (tulipa), sendo o maior para a professora de piano, por sua pachorra em ensinar e me ouvir (ela diz que é bom para fazer sketches). À noite fui jantar no U Pravdu, distante algumas quadras do hotel. Ambiente, comida (peito de frango com queijo camembert e beterraba), cerveja meio-escura e atendimento bons. Voltaria lá não fosse aquela a última noite. Rara tranquilidade para ler e rever textos (Legere). 

Praga é uma cidade turística, cheia de atrações para se visitar e com muita gente a pulular nas principais, em contraste com aquela que eu conheci em 1984, na época da cortina de ferro. As pessoas me pareceram mais sérias, embora nada se compare aos semblantes sombrios que então eu presenciei.  No metrô, também muita gente, mas sem aglomeração. Os trens chegavam no horário previsto e em geral eu encontrava assento vago. Diferentemente do que acontece por aqui, os passageiros mais jovens deixam os lugares vagos os que têm maior necessidade, mesmo não havendo alertas de reserva de assento. E os que estavam na plataforma, antes de entrar aguardavam os que iriam desembarcar. Hoje lamento que o tempo que dispendi com a infrutífera cata de livrarias não me permitiu revisitar a Igreja do Menino Jesus de Praga ou mesmo o Castelo. 

No dia da viagem de retorno, à 11h deixei as malas no hotel e fiz incursão a uma livraria café, que por informação da internet supostamente ficaria perto do hotel. O endereço existia, mas a livraria não mais. Em uma rua paralela almocei no diminuto 
Paprika Mediterranean Kitchen & Bar, de comida ídiche. Quando cheguei estava vazio, mas a meia dúzia de clientes que entrou em seguida deixou-o quase lotado. Depois fui a uma praça ali perto e sentei-me em um banco. Dali a pouco, um mendigo veio sentar-se ao meu lado e iniciou um ritual que consistia em tirar panos e demais petrechos de uma mochila, com a visível finalidade de melhor se acomodar para fazer a sua farofa. Pensei até em dar-lhe um pedaço de chocolate, mas ele, percebendo que havia vaga em  banco próximo mudou-se para lá. No que se sentou, a mulher que estava ao lado levantou-se e saiu – acho que porque ele vestia roupas um tanto encardidas. Saindo dali, andei mais um pouco e em uma área movimentada achei uma apotheque, onde comprei um creme para Eliane. De lá passei pelo Muzeum propriamente dito, ao lado do qual fica uma bela praça. A arquitetura antiga e o verde se encontravam ali em rara afinidade.

E voltei a pé para o hotel, para pegar a mala e aguardar o transfer para o aeroporto, que deveria chegar às 14h, permanecendo em uma sala confortável ao lado da recepção. Na hora exata, chegou alguém que pronunciou o meu nome – e vi um senhor de aparência teutônica, alto, elegante, vestindo paletó e gravata. Era o motorista. Despedi-me e agradeci à loirinha e saímos do hotel; estacionado bem ao lado estava o seu veículo - um BMW X5. O motorista informou que o percurso duraria aproximadamente 35’, ao que eu respondi não haver pressa, pois o voo sairia às 19h. Conversamos um pouco; ele disse ter familiares em Praia Grande – SP e que pretendia um dia visitá-los.  
No aeroporto, não vi ninguém detrás dos guichês. Recorri então a uma moça com camiseta da equipe de apoio, que de modo automático esclareceu que o despacho de mala era feito por máquina, de modo digital. Eu fizera o check-in online, mas lhe fiz ver que gostaria de ter os cartões de embarque físicos, ao que ela respondeu não ser preciso. Insisti e ela, no mesmo tom impessoal, sugeriu que se quisesse, poderia emiti-los pela máquina de autoatendimento. E deu as costas. Em outras palavras, eu que me virasse - e foi o que fiz. Entendo que a moça podia eventualmente estar com pressa, mas o atendimento por um robô teria sido mais amistoso... 

Ao chegar à área de embarque comprei mais um pouco de chocolate com os CZK que me restavam (os preços no freeshop não são convidativos e não há muita variedade) e fui até o portão do meu voo, onde tive algumas horas para continuar a leitura do Érico Veríssimo. Chegamos a Zürich com um pouco de atraso, mas o painel ainda não informava qual seria o portão de embarque do voo para SP. Fiquei apreensivo com o tempo, mas enfim apareceu: Gate A22. Peguei o trem interno que me deixou na área dos portões de embarque. Passagem pelo controle de passaportes e toca a andar até o A22. Chegando lá, novo controle de passaporte no balcão da Swiss e reencontro com os simpáticos ‘nutrólogos’ que conhecera no voo de Zürich a Praga. 

Enquanto aguardava o horário de chamada para o embarque, flagrei uma cena até então inédita:  dois indivíduos (não poderia dizer ‘cavalheiros’), aboletados em quatro cadeiras jogavam cartas animadamente. Bem à vontade, pareciam não se importar em tomar conta do espaço em detrimento dos demais, inclusive os idosos, que gostariam de se sentar. Eu já vira gente esticada em quatro cadeiras para relaxar, mas ocupar o espaço do semelhante com aquele propósito foi a primeira vez. Quem entra em uma sala de espera imagina que deve haver algum grau de civilidade entre as pessoas. Porém, não se deve subestimar a existência do ‘vulgo da humanidade’ (termo empregado por Arthur Schopenhauer), com quem sempre podemos nos deparar em qualquer parte.  

Tendo embarcado na primeira leva, em assento idêntico ao do voo de ida eu aguardava, sem muita esperança, a criatura que sentaria na poltrona do meio. Mais levas passaram até que uma mulher magra, alta e de cabelos castanhos compridos irrompeu da fila e sentou-se ao meu lado. Vestida de modo informal, pele rosada, olhos claros e na casa dos trinta anos, ela murmurou Guten Abend, ao que eu, polidamente, respondi. 
Imediatamente senti a emanação corporal de alguém que tivesse jogado bola o dia inteiro e não tomasse banho. Tentei relevar, consolando-me com a ideia de que ninguém pode ter sorte sempre. Procurei não olhar para ela para ver se a coisa melhorava, o que acabou acontecendo, quando ela desembrulhou um doce de amendoim, cujo aroma competiu e ganhou daquele que exalava ao chegar. Todavia, o efeito foi fugaz: após o término da guloseima, o bouquet voltou. 
Mas lá pelas tantas, quando já deveríamos estar em altitude de cruzeiro, ela colocou um agasalho, o que filtrou o ar, cujas condições anteriores agora eu só sentia traços. Próximo ao jantar, a alemã (ou seria suíça?) começou a dar o ar da graça. Tendo confabulado com a passageira ao lado, que lhe disse já haver jantado, minha colega propôs que eu perguntasse se ela se importaria de aceitar a bandeja servida pela comissária e cedê-la para nós, com o que a moça concordou. Servidas as refeições, constatei que “para nós”, significava ser exclusivamente para minha colega de poltrona. Não satisfeita, quando lhe mostrei que a senhora idosa da poltrona do corredor não tocara em sua porção de queijo, ela pediu que eu lhe assistisse como intérprete para solicitar à senhora aquela iguaria. Solicitação feita, a vovó lhe forneceu não apenas o queijo, mas ainda um tablete de manteiga. Eu mesmo acabei por lhe oferecer minha garrafinha de vinho tinto - do qual só provara um pouco - o que ela prontamente aceitou, guardando-a. 

A impressão que tive inicialmente foi aos poucos se desfazendo - a ‘suíça-alemã’ era muito comunicativa, perguntava às aeromoças, em seu idioma, de que lugar elas eram e fazia comentários amistosos. Disse-me que morava em um lugar da Suíça, próximo de Bern, onde trabalhava no ramo de hotelaria. Com expressão viva e um tanto jocosa, revelou que se lhe perguntassem de onde era, diria não ser de lugar nenhum e que nem sua mãe e sua família sabiam de seu paradeiro naquele momento. Seu destino era Assunción – Paraguai, de onde seguiria para outra cidade onde se encontraria (assim presumia ela) com seu boy friend.  Parecia animada e um pouco ansiosa por ser a sua primeira viagem à América do Sul e fez algumas perguntas sobre como achar transporte ao chegar à capital paraguaia. Eu até proferi algumas frases em Alemão - a primeira (de modo errado) foi Ich habe dort gewesen, que ela delicadamente corrigiu para Ich bin dort gewesen. Diferentemente do costume atual, ela não ficou absorta em celular ou tela e deplorou a violência gratuita dos filmes que os passageiros dos assentos próximos assistiam durante o voo. Gostou da cor da tinta da caneta Lamy que eu usava e disse que queria aprender a extrair pigmentos coloridos a partir de plantas. 

No final das contas, ela foi uma companhia curiosa e interessante, o que ajudou a tornar mais tolerável o fictício enjoy your flight. 

Estas são as minhas impressões da viagem. Enxerguei-as detrás de uma lente panorâmica e de matizes alegres.  Através dela, voltando ao que dizia no início, concluo que ainda que parecesse remota, realizou-se a boa expectativa. Acaso ou motivo? 

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* ”Com espanto e temor a cobra olhou para um nicho brilhante em que a imagem de um rei venerável era mostrada em ouro puro. Seu corpo bem construído estava coberto por vestimentas simples e uma coroa de carvalho juntava-lhe os cabelos.

Assim que a serpente mirou esse augusto retrato, o rei começou a falar e perguntou:

- De onde vens?

- Dos abismos, redargüiu a serpente, onde brilha o ouro.

- O que é mais precioso do que o ouro? – perguntou o rei.

- A luz – respondeu a serpente.

- O que é mais agradável que a luz? – perguntou aquele.

- A conversa – respondeu esta.”

‘O conto da serpente verde e da linda Lilie’ (Das Märchen von der grünen Schlange und der schönen Lilie). Johann Wolfgang von Goethe. [tradução e posfácio Roberto Ahmad Cattani; e interpretação e comentários Oswald Wirth]. São Paulo. Editora Aquariana, 2012.

 


Ainda sem título

         Naquele dia, ao entrar na UTI quis saber como estava o T, um menino de 8-9 anos, internado havia 3 semanas com um quadro convulsivo de provável causa infecciosa (encefalite). O controle parcial das convulsões fora conseguido por meio de coma induzido por barbitúricos e outras drogas novas. Em meio a evidências de infecção, distúrbios eletrolíticos, crises convulsivas detectadas pelo eletroencefalograma, uso de drogas anticonvulsivantes, suportes cardiocirculatório, ventilatório, nutricional e antibióticos, ele vem sobrevivendo. Pela experiência com casos semelhantes sabemos que as chances de recuperação são muito pequenas e que, mesmo que haja melhora do quadro clínico geral, restarão sequelas neurológicas importantes. Naquela semana, mais uma complicação: apareceu-lhe um exantema polimorfo intenso, de provável causa medicamentosa. Como tememos pela síndrome de Stevens Johnson, na terça feira eu e o JC instamos com o P, neurologista, para que suspendesse o fenobarbital, o que ele fez sem muita convicção. Felizmente o exantema melhorou bastante, o que constatei pessoalmente (um provável caso de DRESS - Drug Reaction with Eosinophilia and Systemic Symptoms).

Sua mãe não percebeu quando entrei no quarto. Estava sentada ao lado direito do filho, imóvel, parecendo dormir, com as mãos pousadas sobre ele. Ao aproximar-me devagar e em silêncio para não incomodá-la, notei que logo abaixo de seus olhos, quase cerrados, revelava-se uma lágrima isolada. Cumprimentei-a, comentando sobre a melhora da pele – o que diante do panorama geral era uma boa nova. Ela sorriu, dizendo-me que ele já estava tendo alguma movimentação nas pernas. Procurando sintonizar com o seu discreto otimismo observei que este, em conjunto com outros dados – ele já estava há 24h sem crises – era um bom augúrio. A cena seria aparentemente comum, não fosse a visão do testemunho silencioso da dor materna que, por poucos segundos, despiu-me da máscara que os de minha profissão aprendem com o tempo a vestir, e que nos afasta de sentimentos que podem interferir em nosso raciocínio e prejudicar a terapêutica. 

        Médicos têm algum poder para mudar a evolução natural das doenças e isso, como ocorria aos pagés e feiticeiros, os distancia um pouco da realidade dos seres humanos. São sensações como a que me passou a lágrima da mãe que nos tornam outra vez pessoas comuns e conscientes de que estamos sujeitos às doenças e tragédias como todo o mundo. 

Como coordenador não tenho contato frequente com os pacientes da UTI e suas famílias, mas apenas uma visão panorâmica e pontual dos casos das crianças internadas. Entretanto, desde aquele momento penso neles como até então não o fizera.

O presente da Rosilene

         Era antevéspera de Natal, época em que a gente corre para atender alguns compromissos e driblar outros. Como eu não voltaria ao hospital nos próximos dias, decidi passar por lá rapidamente para instalar um programa de cálculo de nutrição parenteral e doar um livro ao centro de estudos. 

        No caminho, recebi ligação do JC, preocupado com presente da Rosilene, a enfermeira que tem nos ajudado com boa vontade nas tarefas de verificar o estado dos equipamentos e tratar com os fornecedores. Tranquilizei-o dizendo que pedira ao nosso colega LF para que providenciasse uma lembrança de Natal para ela, o que naquela altura já deveria ter feito. Ele comentou que na circunstância atual seria ainda mais importante dar-lhe alguma coisa pois, da sua parte, ela já lhe havia feito tal gentileza (“apareceu um presente da Rosilene aqui”). 

Quando nos encontramos no saguão do sexto andar, ao ver a Rosilene por perto, ele voltou ao assunto, demonstrando alguma inquietação. Queria saber se eu também havia ganho o meu presente. 

-- Não? Pois você também vai ganhar. Eu ganhei uma caixa de chocolates. Temos que saber se o LF deu uma lembrança da nossa parte, senão vai pegar mal.

Estando ela a uma certa proximidade nossa, desconversei para manter discrição. Porém, a partir daquele momento, a possibilidade do LF ter esquecido de sua missão começou a me incomodar. Liguei para o seu telefone celular que, como em outras ocasiões em que é necessário falar com ele, estava em regime de caixa postal.  

Um pouco mais tarde, já em nossa sala, enquanto preenchíamos a nota fiscal dos honorários repassados pelo hospital, o JC ainda estava intrigado: “Poxa, mas ela não deveria ter dado presentes a nós todos? Por que só eu fui agraciado?”

Desejando finalizar o assunto, respondi alguma coisa como:

-- “Ora, vai ver que ela está a fim de dar pra você!” Mas ele não se resignou: 

-- É provável que o LF também tenha ganhado. Ela gosta dele “pra caralho...”

Esta singela troca de impressões foi subitamente interrompida pela figura da nossa enfermeira, que surgiu à porta e cumprimentou-nos com jovialidade. Então, um JC solícito interrompeu o que estava fazendo e, em um tom mais amistoso do que de costume, levantou-se e disse:

- Ô menina, antes de mais nada eu quero lhe agradecer pelo presente que você me deu. Muito obrigado, mas não precisava se incomodar! – foram suas palavras em meio a votos de feliz natal, abraço e beijinhos como é praxe nessas situações. Terminada a confraternização, ela esclareceu, com ar divertido:

-- Mas que presente? Eu não dei presente nenhum!

-- Não mesmo? E a caixa de chocolates, quem foi que deu? 

-- Sei lá, mas eu não fui.

-- Ué... 

Risadinhas de lá e cá, a cena tornou-se um pouco mais cômica do que embaraçosa quando o JC saiu-se com um gracejo quase feliz: 

--É, mas o beijinho eu não devolvo!

Assim que ela se foi, meu amigo desabafou: “Aquele tonto do WP! Não sabe nem dar uma informação!”

-- O que ele disse pra você?

-- Que tinha um presente da Rosilene para mim! Se não foi da Rosilene de quem teria sido então? 

-- Não sei. É possível que o LF tenha se esquecido do presente, do contrário ela teria feito algum comentário agradecendo. Ponderei que ainda tínhamos tempo, pois ele estaria aqui na manhã seguinte, dia 24. Contudo, ficou a dúvida se Rosilene viria trabalhar na véspera de Natal.  

    Decorridos alguns dias do episódio, ao conversar com o LF soube ele havia sim comprado oportunamente uma  lembrança para a Rosilene e deixado com o WP, colega da UTI, para que o JC, naquele dia, a entregasse a ela em nome da nossa equipe.  Era a caixa de chocolates, segundo a informação do WP o tal “presente da Rosilene” que aparecera na UTI, e que o JC interpretara como sendo destinado a ele.   

    A realidade, cada um a enxerga como quer.


Legere

Legere 

Já disseram que à medida que se envelhece, o passado torna-se mais interessante.

Este não é um inventário de livros, mas um breve recordatório, em que procurei me lembrar dos que encontrei pelo caminho e as circunstâncias em que me foram apresentados. Restringi os critérios de seleção à qualidade literária, ao valor sentimental e ao entusiasmo com que foram lidos – notadamente os infantis. Uns tantos que considero de boa qualidade, ficarão de fora, porque não couberam nesta régua. Haverá aqueles de que gostei, mas que fugiram da lembrança. E eventualmente aparecerão exceções que não preenchem os dois primeiros parâmetros. Então, na prática, a escolha foi arbitrária, baseada em afinidades e na memória.  

Trilha inicial 

Em princípios de 1959, aos seis anos de idade, fui alfabetizado, o que me lançou no mundo da leitura. Das pequenas histórias de livros que ganhava de meus familiares do Sul, me agradou particularmente a de um camponês, que por ouvir relatos de que se poderia ganhar dinheiro e ser próspero, decidira tentar a vida na cidade grande. Decorridas semanas em que se mudara, na noite de um dia cansativo e infrutífero, como os demais desde que lá chegara, ele estava só em seu quarto da pensão.  Desiludido por ter sido passado para trás por indivíduos em quem acreditara, ele matutava com seus botões sobre o que fazer, quando ouviu chamarem-no pelo nome. O som parecia vir do armário de madeira à sua frente, o que o deixou intrigado. E entrou em sobressalto quando, apresentando-se, a voz lhe revelou ser uma velha árvore que ele conhecera no sítio onde morava. Agora, na forma de um móvel, conversava com ele, tentando consolá-lo. Sábia, velha árvore alertou o rapaz sobre as maldades do mundo e deu-lhe conselhos prudentes. Um pouco aliviado de sua tristeza, depois de refletir, ele decidiu retomar à vida frugal e saudável que deixara em seu rincão no campo, para continuar ao lado dos seus. Aquele conto simplório chamou minha atenção por tratar dos perigos do mundo, do valor das coisas simples e honestas e sobretudo da amizade.  

Em 1960, alguns livros me ajudaram a subsistir face às três mudanças de escola e de domicílio pelas quais passara nos últimos seis meses. Um dos primeiros foi Peter Pan, que meu pai me comprou em uma livraria-papelaria quando subíamos a rua Voluntários da Pátria. Era uma edição da Melhoramentos baseada na adaptação simplificada da história do escocês JM Barrie feita por Walt Disney em seu longa-metragem, mas o bastante para me cativar. Depois, Os mais belos contos de fada tchecos (Editora Vecchi), de capa dura, que ele trouxe em uma noite ao chegar em casa, como presente dado por não me lembro quem – possivelmente de sua madrinha de formatura na Escola Técnica de Aviação. Este livro, com texto mais elaborado, me animou por conter histórias de cavaleiros da Idade Média. 

Meu universo literário era então povoado por criaturas fantásticas e personagens heroicas. Era um começo. A seguir vieram Histórias das mil e uma noites, O patinho feio, Soldadinho de chumbo, Robinson Crusoé (Daniel Defoe) a coletânea Histórias da Carochinha e Viagens de Gulliver (Jonathan Swift) entre os que eu me lembro, e livros eu adquiria com o dinheirinho que vinha do Sul pelo correio, junto com as ansiadas cartas de minha avó e minha tia Esther. 

Naquele mesmo ano fomos presenteados com duas obras clássicas por um dos irmãos do meu pai, o tio Sergio, que era vendedor de livros. Minha mãe recebeu uma Bíblia ilustrada, em dois volumes - o antigo e o novo testamento. De encadernação luxuosa e capa vermelha, a edição primava por ilustrações a cores de matizes sinistras. Impressionaram-me a figura de Lúcifer, a visão uma cisterna, as imagens do julgamento de Cristo, e sua tentação no alto de uma montanha com o diabo a oferecer-lhe “todos os reinos do mundo”, a figura de Barrabás, e o desespero de Judas a caminho da oliveira onde se enforcaria. No velho testamento, o jovem Davi, com sua funda, a enfrentar Golias. Mas prefiro falar da coleção de três livros que ganhei, em capa dura de cor azul, chamada Paraíso Infantil - A palavra através da imagem e da cor, que seria meu Vade mecum por um tempo. Na simplicidade dos meus oito anos, em 1961 emprestei-o à dona Maria do Carmo Rocha, minha inesquecível professora do terceiro ano primário, para que ela atestasse pessoalmente o quão instrutivo e interessante era o conteúdo de suas páginas. Desconfio que ela não tenha chegado a ler. 

Certos livros aos quais tive acesso entre 1960 e 1961 me agradaram, mas reservo um lugar especial ao infantil de Érico Veríssimo (Gente e Bichos) e a Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato, um mergulho inicial na mitologia grega, cujo primeiro tomo li em seis dias, durante as férias de julho de 1961. 

Fui feliz em contar com uma boa biblioteca municipal, que ficava bem em frente grupo escolar onde eu estudava. Em meio de uma ampla área ajardinada, a sede da Biblioteca Narbal Fontes - imóvel tombado - é uma casa de formas arquitetônicas normandas. Era para lá que eu e meu irão íamos após concluir as lições de casa. Mais do que biblioteca, simbolizava uma figura materna dadivosa a alimentar seus filhos com suas estantes repletas de livros infanto-juvenis que eu levava emprestados todas as semanas. Há menos de 1 ano fiquei por mais de 30’ ao telefone a conversar com a bibliotecária para buscar informações sobre a escola em que estudei ao chegar São Paulo. Atenciosa, ela não demonstrou ter pressa e deve ter entendeu o meu intento puramente nostálgico. 

Um dia retornarei lá para matar as saudades.   

Itinerários

Embalado, lia espontaneamente tudo que encontrava, incluindo as Seleções do Readers Digest, Marcelino Pão e Vinho, Pinocchio (o original de Carlo Collodi) e mais tarde o Tesouro da Juventude. Este último, uma maravilhosa enciclopédia ilustrada em dezoito volumes, foi presenteado por minha tia Esther em dezembro de 1962; lembro-me da euforia com que ia retirando um a um, os volumes da caixa entregue pela VARIG.

Através da leitura, eu entrava em um mundo desconhecido e às vezes mais instigante do que o real. Nenhuma tela, algoritmo ou realidade virtual substitui as impressões e a representação das imagens produzidas pelas conexões mentais que ativamos ao ler uma história. É lamentável que as novas gerações não saibam disso, e provavelmente não venham a saber. 

A partir dos dez anos de idade eu seguia conhecendo a essencial coleção de livros infantis de Monteiro Lobato, alguns emprestados de amigos e colegas, como Geografia de Dona Benta, Aritmética da Emília, Peter Pan, Caçadas de Pedrinho, edições simplificadas das obras de Charles Dickens (Conto e Natal), Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, Os Irmãos Corsos), e As Viagens de Marco Polo. 

Mas de regra, eu ficava à mercê do que meu pai trazia para casa - exemplares de Seleções do Readers Digest e respectivas condensações de livros (através dos quais travei contato com bons escritores, entre os quais Daphne Du Maurier na edição em Inglês de The Scapegoat, A.S. Exupéry em Céus e Abismos, John Fante em Estuante de vida e Patrick Quentin com A viúva negra. Além destas há outras de que gostei e que são mencionadas ao final do texto*. 

Havia também os da Biblioteca do Exército, que meu pai assinava; à medida que iam tomando lugar na estante da sala, eu procurava ler, se me interessassem - e o periódico mensal Revista Aeronáutica. Não poderia omitir Grandes benfeitores da humanidade, que ganhei de meu pai no dia da cerimônia de formatura do curso primário, em que me chamaram a atenção, sobretudo Benjamin Franklin, e da dupla de cirurgiões dentistas - Thomas Green Morton e o (infeliz) Horace Wells que, a partir do gás hilariante, desenvolveram a anestesia. E guardado na parte interna da estante da sala, História da Civilização Ocidental, clássico de Edward McNall Burns publicado em dois volumes pela Editora Globo (Porto Alegre), de capa amarela e preta e em edição de 1947. Obviamente, não li na íntegra, mas gostava de consultá-lo com frequência. 

Durante os últimos anos da década de 1960, como parte do ensino de Português, li José de Alencar (O Gaúcho, Senhora e A Pata da Gazela), Machado de Assis (Quincas Borba, Helena) e voltaria a Érico Veríssimo com Clarissa e Música ao Longe, entre outros. 

Dos livros da Biblioteca do Exército, as biografias de Heinz Guderian, de Otto Skorzeny, Rommel e a invasão da Normandia, A Revanche dos dois vencidos (de Max Clos e Yves Cuau, sobre o reerguimento econômico da Alemanha e do Japão no pós-guerra), Arquipélago Gulag, relato desolador escrito por Aleksandr Soljenítsin sobre o período em que ele e outros dissidentes permaneceram em campos de trabalho forçado na antiga União Soviética. 

Guardo até hoje História Secreta da Última Guerra, das Seleções do Readers Digest - crônicas sobre episódios vividos por seus protagonistas ou narrados por bons jornalistas correspondentes de guerra. Todas eram muito bem escritas, tendo me chamado a atenção Lindberg Narra seu Primeiro Voo de Guerra, em que Charles Lindberg, em prosa ligeiramente romântica, filosofa sobre o porquê de os homens se baterem em guerras; Uma noite inesquecível - relato de uma noite de bombardeio em Londres em 1940; o dramático O fim do Bismark e o animador Como Heidelberg foi salva, sobre um patrimônio mundial que eu viria a visitar muitas décadas depois. 

Nesta mesma linha, havia os livros da Editora Flamboyant sobre a guerra aérea, que devorávamos eu e meu irmão até princípios dos anos 70 – Piloto de Stuka, Fogo no Céu, Príncipes do Céu, A Grande Caça e o Grande Circo, em que Pierre Clostermann narra histórias vividas por ases de ambos os lados e por ele mesmo. E Missão 60, em que Fernando Pereyron Mocellin conta a sua saga para se tornar piloto de caça e integrar o grupo da FAB que lutou nos céus da Itália durante a II Guerra Mundial. 

No início do curso colegial, tendo me filiado ao Clube do Livro, chegaram pelo correio O Espião que saiu do frio (John le Carré) e outros, como Da Terra à Lua (Jules Verne). Seguiu-se um período refratário, em que meu interesse era mais voltado para o futebol, mas não deixava de reler alguns dos que tinha em casa. Foi o caso de Urupês, de Monteiro Lobato, que minha irmã lera como tarefa escolar. O escritor, deixando de lado a influência da literatura francesa, comum na época, conta histórias da gente do interior - ora engraçadas ora trágicas - em linguagem genuinamente nacional. 

Referências

Durante o curso superior, por sugestão de um colega - que gostava de assumir ares de erudito ao fazer digressões sobre assuntos que não dominávamos – li Somerset Maughan (O fio da navalha), George Orwell (1984) e Johannes Mario Simmel (Nem só de caviar vive o homem). Garimpando na então moderna e ampla Biblioteca Municipal de Campinas encontrei o Admirável mundo novo (Aldous Huxley) e Histórias que mamãe nunca me contou (Alfred Hitchcock). 

Mais tarde, em 1978, a curta convivência com uma moça formada em Letras (Português e Alemão) ensejou que eu ganhasse de Natal Batismo de Fogo (Mario Vargas Lhosa) e, por sua recomendação, voltasse a me encontrar com Érico Veríssimo no irreal Incidente em Antares. Dele, só recentemente li Olhai os Lírios do Campo. 

Há outros que me foram indicados ou ganhei de pessoas que gostavam de ler: O conto da ilha desconhecida (José Saramago), História da Música (Otto Maria Carpeaux), Poetas Russos (vários), Contos Dublinenses (James Joyce) e A peste, de Albert Camus, de quem leria também os igualmente lúgubres O estrangeiro e A queda, e por último, Diário de Viagem.

Quando compartimos interesses com alguém de quem gostamos, estabelece-se espontaneamente um elo mental que pode favorecer o afetivo e o resultado será profícuo para ambos. De certas pessoas recebi referências sobre livros e até motivação para ler. Duas mulheres com as quais tive ligação deram, cada uma à sua maneira, contribuições decisivas para ambas as coisas. 

A primeira me levou a conhecer Jorge Amado (de quem ela lera tudo) - Farda, fardão, camisola de dormir (mostra as tramas políticas para se conseguir uma vaga na Academia Brasileira de Letras), depois Navegação de Cabotagem (nesse ele estava mais engraçado) e Zelia Gattai, sua esposa. Às vezes privávamos da leitura juntos, em revezamento, caso de Não verás país nenhum (Ignacio de Loyola Brandão) comprado em uma manhã de quinta-feira santa na antiga Livraria Cultura do Conjunto Nacional, e que no mesmo dia nos fez companhia durante um acampamento (Hans Camping) em Penedo, na Serra da Mantiqueira. Do autor viríamos a ler outros, com ênfase para O beijo não vem da boca, Zero, Cabeças de segunda-feira e O verde violentou o muro. A série de nossa comunhão literária é grande, mas notavelmente George Orwell, de quem gostei mais na fase prévia a 1984 e Revolução dos Bichos, talvez por ele acenar com pelo menos um fio de esperança na humanidade. Poucos livros fizeram com que eu me identificasse mais com um escritor do que Lutando na Espanha e Na penúria em Londres e Paris. Neste último, parece que vivemos as suas desventuras junto aos camaradas pobres, vagabundos e tipos excêntricos que integravam a população flutuante das pensões sujas e albergues que lhe serviram de moradia nos tempos em que se viu sem dinheiro. Pode ter sido naquela época que adquiriu o bacilo de Koch que iria levá-lo aos 46 anos, em 1950. Na sequência, leríamos Dias na Birmânia, A Clergyman’s daughter, A caminho de Wigan, Keep the Aspidistra Flying e Um pouco de ar, por favor. 

Não haver um aparelho de TV em casa foi um fator adjuvante, mas a força primordial para ler vinha de nossa vontade inata.  O catálogo prosseguia: A Era da Incerteza (John Kenneth Galbraith), A República de Weimar (Lionel Richard), Paris nos tempos do Rei Sol (Jacques Wilhelm), A Guerra do Fim do Mundo (Mario Vargas Lhosa), Walden - A vida nos bosques (Henry Thoreau) e alguns sombrios contos de Kafka (Um artista da fome, A construção, A Metamorfose) são os que me lembro agora, além de O Beijo da Mulher Aranha (Manuel Puig), Mad Maria, A Condolência e A ordem do dia do amazonense Marcio de Souza; Chega de saudade, O Livro de Insultos de Mencken  e A estrela solitária (Ruy Castro); Cem Dias entre Céu e Mar (Amyr Klink); Ensaios Insólitos (Darcy Ribeiro) e das histórias engraçadas do Luís Fernando Verissimo. E claro, chegaram às nossas mãos aqueles de cunho histórico e marxista, como os dos festejados Paul Singer e Hobsbawn, que estavam em voga, e cujas ideias nos eram simpáticas por sermos jovens e crédulos - e, portanto, pouco informados. Nestes não irei me deter. Mas a título de citação, guardo, pelo valor documental, uma edição em Português do propagandístico e caricato História da URSS – breve relato da construção da sociedade socialista, que descobrimos por acaso quando visitávamos uma livrara em Budapeste, em 1984. 

Lembro-me de De Caligari a Hitler - História psicológica do cinema alemão, de Siegfried Krakauer, e de Lanterna Mágica, autobiografia de Ingmar Bergman. Nos últimos tempos juntos, Imagens (Ingmar Bergman), que ela me presenteou, Everest: Viagem à Montanha Abençoada (Thomas Brandolin) e aquela considerada como a melhor biografia de Freud: Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo, de Peter Gay, que li panoramicamente e estimulado mais pela perspectiva histórica do que por suas ideias.  

Graças àquela mulher de riso espontâneo e sorriso envergonhado, que primava pelo senso prático, entendi a filosofia de Exupéry em O Pequeno Príncipe, que não é um livro apenas para crianças. Os primeiros anos em sua companhia foram auspiciosos, tamanhas eram as certezas que tínhamos e tantas as coisas novas a descobrir.

Da segunda, embora de início lhe tivesse notado encantos, não a vislumbrara como uma jovem da qual um dia eu pudesse me aproximar. Isso mudaria quando ela passou a me fazer companhia com suas conversas sobre livros, nas altas horas de plantões que vivemos juntos. Então eu passaria a conhecer mais profundamente Saint-Exupéry, através de Terra dos Homens (na tradução de Rubem Braga), Correio Sul e Voo Noturno, me depararia com o estranho mundo DH Lawrence (O amante de Lady Chatterley), leria contos William Faulkner e O corvo (Edgar Allan Poe) - segundo ela dizia, o poema mais traduzido do mundo. Na tradução ímpar de Fernando Pessoa, transcrevo abaixo suas duas primeiras estrofes:

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, 

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, 

E já quase adormecia, ouvi o que parecia 

O som de algúem que batia levemente a meus umbrais. 

"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. 

É só isto, e nada mais." 

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, 

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. 

Como eu quria a madrugada, toda a noite aos livros dada 

Pra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais 

- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, 

Mas sem nome aqui jamais!

Conversávamos sobre tudo - coisas importantes ou não, e as ideias fluíam como as ondas de seus cabelos - longos e de uma cor viva e marcante. Ela estava sempre em dúvida e costumava dizer que não confiava em ninguém, nem nela própria. Mas onde encontrar alguém para discutir Saint-Exupéry (que não só O Pequeno Príncipe), personagens da revolução francesa (entre eles, Marat, cuja biografia me presenteou), e que tivesse lido o Diário de Ana Maria?  

O material de que era feita - uma mistura incomum de pragmatismo e leveza – dava-lhe um encanto psicológico que me atraía. Lembro-me do fim de tarde em que ao sair do trabalho a avistei no ponto de ônibus, antes de um temporal que se anunciava. Movido por reflexo, parei e ofereci-lhe carona. O vento que fazia voar as folhas das árvores e a visão quase onírica de sua figura - a pele muito clara, os cabelos ondulados e revoltos - que contrastava com tudo...ela aceitara e fomos conversando, como se nos conhecêssemos de longo tempo.

Um dia me dei conta de que ela iria partir. Tomado por uma sensação amarga diante de sua ausência iminente e antevendo que o mundo ficaria desinteressante, escrevi e enviei a ela algumas linhas...

Dias depois, no final da tarde, eu me preparava para sair do trabalho, quando fui informado de que havia alguém querendo me ver.

Era ela. Alegre e expansiva, trazia consigo um diário de sua época de escola e um livro sem capa, de páginas amareladas pelo tempo - aparentava ser um romance passado na corte do rei Luís XIV. Apontando algumas frases - em seu olhar transparecia uma discreta cumplicidade - parou em uma que dizia: ‘o amor pode tudo’. Eu, que nunca recebera uma resposta tão suave, e agradavelmente surpreso com sua visita imprevista, levei-a até o ponto de ônibus e sugeri que continuássemos a conversa em outro lugar naquela noite, com o que ela concordou... 

O bar estava iluminado e quase vazio ao chegarmos. Acomodamo-nos, ela conduzida por palavras e eu, por pensamentos. Pareceu-me ouvir ao longe - não me lembro se naquele instante ou depois - um bandoneon (teria sido?) agradável e discreto. Porque meus sentidos estavam atentos a outro foco: os contornos de seu rosto, os ombros e o som de sua voz.  

Tomado pela lucidez que nos assiste nos momentos cruciais, percebi claramente que não havia mais o que falar ou pensar. Em certo momento, encontrando uma brecha em meio à sua loquacidade, pedi-lhe alguma coisa...Calados, juntamos tacitamente as mãos e olhamo-nos nos olhos. Assim ficamos por instantes até que eu a puxei para mim - nossos lábios se encontraram e então senti, visceralmente, o mesmo gosto e leveza que sentia quando conversávamos. E à medida que sobrevinham, as sensações me transportaram para aquilo que eu viria a ler, anos mais tarde, no epílogo de um conto de Thomas Mann: “Pois uma felicidade, um pequeno calafrio e atordoamento de felicidade toca o coração quando aqueles dois mundos entre os quais oscila nosso anseio se tocam por um breve, enganoso instante”.

Nas ocasiões em que dava o ar da graça - estava sempre a transitar e nunca permanecia em definitivo - ela certa vez me dissera estar desconfiada de viver a encarnação de uma personagem histórica - Desiré, que até ali eu desconhecia. Naturalmente achei estranho, e decidido a investigar, adquiri o livro do mesmo nome, da autora Annemarie Selinko, que narra a história de Bernardine Eugénie Desiré Claire, a primeira noiva de Napoleão Bonaparte e que mais tarde seria, como esposa do Marechal Bernadotte, rainha da Suécia.    

Não irei me alongar mais sobre o insólito relacionamento - creio que as breves passagens aqui resumidas são suficientes. Digo apenas ter sido ela um dos fatores que animaram a vontade de escrever que desenvolvi na época. 

Movimento inercial

No compasso daquela fase apareceram Contos breves – O mago apodrecido de Guillaume Apollinaire, Contos Fantásticos – O Horta & outras histórias de Guy de Maupassant, Memórias de Lorenzo da Ponte - o principal libretista de grandes óperas de W.A. Mozart, Eu (Augusto dos Anjos), Clepsidra (Camilo Pessanha), A paixão transformada (Moacyr Scliar) e A Divina Comédia (Dante Alighieri) traduzida em prosa por Hernâni Donato, leitura que interrompi quando Dante chega ao Paraíso, por tê-lo achado sem emoção

Mais adiante Flores do Mal (Baudelaire), Por um punhado de Gitanes (biografia de Serge Gainsbourg), A estrada (Jack London), Servidão humana e O destino de um homem (S. Maugham) além das biografias de François Truffaut, de WA Mozart, de Exupéry, e de Beethoven. Nesta última, o autor (Lewis Lockwood), docente aposentado de música em uma universidade americana famosa, se excede nos termos técnicos e arrisca-se a evocar imagens do que teria ido na cabeça do Beethoven para criar essa ou aquela composição. Se excede ainda mais ao fazer comentários - a meu ver enviesados - sobre o panorama político da época. Como não tenho erudição para entender as peculiaridades teóricas de peças musicais e acho que o autor não deve ter conhecimento apropriado para dissertar sobre a realidade europeia de então, não fui além da metade do livro. 

Devemos louvar os escritores que mais contribuíram para nossa jornada literária.  Na ordem em que me foi dado ler suas obras, figuram no panteão, em ordem cronológica: Érico Verissimo, Machado de Assis, George Orwell, Antoine de Saint-Exupéry, Hermann Hesse, Thomas Mann, Dostoiévski, Liev Tolstói, Nikolai Gogol e Charles Dickens. Da literatura infantil, Monteiro Lobato, Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm. Dos pensadores, Arthur Schopenhauer (O mundo como vontade e representação e A arte de escrever entre muitos); dos cronistas, Rubem Braga e dos poetas, Mario Quintana, Fernando Pessoa (Quando fui outro), Manuel Bandeira (Meus poemas preferidos), Carlos Drummond de Andrade (Memória; A bunda, que engraçada) e Emily Dickinson (A Água se aprende pela sede...). 

A propósito de poesia, por intermédio de uma psicóloga com quem tive uma interação fortuita durante a estação de entressafra - e que admirava Lou Salomé - conheci Rainer Maria Rilke (Frutos e Apontamentos, Histórias do Bom Deus, Cartas a um jovem poeta). Este último eu presentearia a uma moça, que até hoje não deve ter entendido o porquê – talvez porque ela fosse bem jovem e eu nem tanto... 

Em um plano não tão alto, merecem ser reverenciados: John Fante (A Caminho de Los Angeles; Pergunte ao pó; Espere a Primavera, Bandini; O Vinho da Juventude; A grande fome; Sonhos de Bunker Hill; 1933 foi um ano ruim) que, segundo outro grande, Charles Bukowski, escrevia com as entranhas e o coração, e os que mencionarei a seguir:  

William Somerset Maugham, hábil criador de tramas, era médico, mas não exerceu a profissão; tendo atuado pouco tempo como agente do Serviço Secreto Inglês, viveu sua longa vida para escrever. 

Oscar Wilde, gênio da prosa e da ironia e crítico sutil e sagaz das farsas sociais em seus contos, poemas e histórias de fadas em que acontecia de tudo, menos um final feliz.  

De Ernst Hemingway, aclamado pela crítica por seu estilo simples e direto, gostei de Por quem os sinos dobram (na tradução de Monteiro Lobato, superior às demais), O sol também se levanta, Paris é uma Festa e dos contos As Neves do Kilimanjaro e Lá no Michigan, mas nem tanto de Adeus às armas. Em Paris é uma Festa, publicado postumamente, o autor evoca a Paris dos anos 20 – para onde iam os intelectuais e artistas da época – em uma aparente atmosfera de otimismo, leveza e até humor, o que destoa das outras suas histórias. 

Erich Maria Remarque, vim a descobrir tardiamente, embora tivesse adquirido o célebre Nada de Novo no Front vinte anos antes, na mesma época que O lobo da estepe e também por 3 reais. Porque me agradei tanto do livro, li quase todos os demais de sua autoria – em geral de segunda mão ou no formato de e-book, por não haver mais edições impressas. Entre eles, destaco Arco do Triunfo, Uma noite em Lisboa e Três camaradas, que deram origem - a exemplo do primeiro e de outros - a filmes em que atuaram grandes nomes de Hollywood. O melhor deles The night in Lisbon (Die Nacht von Lissabon) que em minha opinião transmite a atmosfera de temor e de esperança angustiante  de suas  histórias, foi dirigido com rara sensibilidade pelo tcheco Zbynek Brynych em 1971, tendo a interpretação marcante de grandes atores alemães (https://youtu.be/R50rPYCJMuc?feature=shared). Nessa e em quase todas as suas histórias há medo, sofrimento e morte, mas também amor, lealdade e esperança, vividas nas sagas das personagens que, como ele mesmo, escaparam ou tentaram escapar do regime que dominou a Alemanha de 1933 a 1945. 

Stephan Zweig, cuja vida foi abalada por duas guerras mundiais, escreveu Três novelas femininas e as biografias de Tolstói e de Freud (com quem teve alguma convivência). Retratou a nostálgica Viena de outros tempos em Autobiografia - O mundo de ontem. Tendo perdido o seu mundo, veio se exilar em Petrópolis, no Brasil, onde teria, junto com sua companheira, um triste desenlace.

Há os eu comecei e não terminei, como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (pulei o volume 4 e não fui além do 5) e O homem duplicado (José Saramago). Tenho uma edição em Português de Portugal (Editora Europa América) de 20.00 Léguas Submarinas, de Júlio Verne, que comecei e não fui adiante por já conhecer a história (as edições para crianças eram muito divulgadas  em 1962) ... e é óbvio haver um número infindável dos que gostaria de ler e ainda não li, ou li apenas trechos - caso de Fausto, de W. Goethe, e de autores que provavelmente não chegarei a ler, como Miguel de Cervantes, Gustave Flaubert, Mark Twain, e Stendhal (O Vermelho e o Negro, de quem a segunda jovem mencionada dizia gostar). 

E de novo, os livros que estavam bem à vista nos mostruários das livrarias acabaram me alcançando, como O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (do neurologista Oliver Sacks), O Físico (Noah Gordon) - história interessante sobre os primórdios da Medicina, mas de narrativa linear e insípida; O dia em que Nietzche Chorou, e Sobre a China (Henry Kissinger) além de outros de que não me lembro.  

Os que que foram e não voltaram

No afã de compartilhar leituras que eu havia gostado com pessoas de quem gostava, perdi de vista, definitivamente, alguns bons livros. Teria sido por esquecimento delas? Não. Penso que tinham por hábito adotar o meigo princípio segundo o qual “o que meu é seu”, só que invertido – “o que é seu, passa a ser meu...”. Entre tais livros estão Nêmesis Médica – A expropriação da Saúde (de Ivan Illich, que comprei em 1980 em uma livraria na rua 24 de Maio), A velhinha de Taubaté, Cabeças de segunda-feira, Keep the Aspidistra Flying, emprestados a amigos que à época professavam o socialismo oposto ao que pregou Jesus, ou seja, ao invés de pegar suas coisas para dividir com próximo, pegavam as coisas do próximo para dividir com os seus. Correio Sul e Voo Noturno acabaram ficando para aquela que gostava tanto do Exupéry, além outros que não me ocorrem agora. 

Mais tarde

Comecei a ler a obra de Herman Hesse aos 46 anos, com O Lobo da Estepe, publicação original da Editora Record, capa dura, pela qual paguei 3 reais em 1999, que estava em uma pilha de livros em promoção, à entrada da livraria Nobel do cruzamento das avenidas Paulista e Brigadeiro Luiz Antônio. Agradou-me por sua incomum personagem, e por tratar da psicologia do homem maduro. Tanto que comecei a ler o livro em São Paulo e o levei comigo para uma viagem solitária à Irlanda. É uma história fantástica no sentido exato do termo. A ela se seguiriam outras – A arte dos Ociosos (que fortuitamente achei em um sebo de Porto Alegre, em 2004), Demian, O Último Verão de Klingsor, e Sidharta, que comecei e não terminei por achar monótono. 

Na sequência viria Thomas Mann, conhecido pela elegância e desenvoltura do estilo.  É o autor de A montanha mágica e Doutor Fausto. Este último eu havia ganho de uma residente em uma festa de amigo secreto quando tinha por volta de 30 anos; comecei a ler, mas não fui adiante, por falta de tempo e porque não estava preparado para entender as interioridades da história. Voltaria a ele uns 25 anos mais tarde. É talvez o único livro que me tenha dado a sensação de medo, na cena em que que o protagonista, o compositor Adrian Leverkühn é abordado pelo Demônio. Na trama, desenvolvida a partir de uma fábula do folclore alemão – ao que parece publicada pela primeira vez em 1587 - Mann faz um paralelo com a derrocada da Alemanha durante período de governo nazista. Em seus livros, ele consegue ser dramático, irônico e engraçado, mas sempre com classe e sem resvalar no lugar-comum. Certamente contribuíram para valorizar sua obra entre nós as traduções de Herbert Karo. O trecho que transcrevo abaixo, dá ideia da sutileza com que descreve, na pessoa do professor Zeitblom, narrador da história, a jovem com a qual seu amigo Adrian, tencionava se casar: 

“Estou em condições de esboçar um retrato de Marie Godeau, já que, pouco depois, por boas razões, meus olhos se fixaram nela demoradamente para um exame bastante intenso. Se jamais o epíteto "simpática" se adequou a uma pessoa, certamente cabe ele para designar essa moça, que, da cabeça aos pés, com cada palavra, cada sorriso, cada expressão, correspondia ao significado sereno, moderado, estético e moral da palavra. Menciono, antes de mais nada, que Marie tinha os mais lindos olhos negros do mundo, olhos pretos como azeviche, como pez, como amoras silvestres maduras, olhos não muito grandes, mas cuja mirada saía franca, clara, pura de profundezas obscuras, debaixo das sobrancelhas, cujo desenho fino, regular, tão pouco se devia à arte cosmética quanto o suave e inato vermelho dos lábios. Nessa jovem não havia nada que fosse artificial, nada de arrebiques que devessem sublinhar, intensificar, colorir os traços do rosto. A graça natural, sóbria, com que a basta cabeleira castanha estava puxada para trás, pesando sobre a nuca, desnudando a testa e as delicadas têmporas, e deixando livres as orelhas — essa graça impregnava as mãos também, mãos belas e sensíveis, nada pequenas, porém delgadas e de ossamenta fina. Os punhos de uma blusa de seda branca ajustavam-se nos pulsos. A gola lisa envolvia da mesma forma o pescoço, que, esbelto e redondo, qual coluna magistralmente esculpida, saía dela, coroado pelo graciosamente afilado oval do rosto ebúrneo com o narizinho fino, bem plasmado. A vitalidade com que Marie abria as narinas chamava-me a atenção. Seu sorriso não muito frequente, suas risadas ainda mais raras, que sempre exigiam algum esforço quase comovente da quase diáfana região temporal, punham a descoberto o esmalte dos dentes regulares, muito juntos”.

No início, a leitura de Doutor Fausto pode soar morosa para quem não é versado em teologia e teoria musical, temas sobre os quais os protagonistas se embrenham em densos diálogos, mas depois passa a fluir bem. Aos que nunca leram o autor, sugiro começar por seus contos, como eu fiz com Os Famintos e Outras Histórias da Editora Nova Fronteira, que foi a plataforma de lançamento para que eu chegasse a ler Doutor Fausto.

A montanha mágica, retrato da alta sociedade europeia à beira da primeira guerra mundial reúne questões culturais, sociais, médicas, sobre arte, amor, entendimentos e desentendimentos que movem o quotidiano dos habitantes daquele mundo particular - em que o tempo e a morte também são protagonistas - narradas às vezes com ironia através da lente de perfeição estética do autor.  É o livro que mais me fascinou até hoje.

Outras obras maiores que li a seguir – Os Brudenbrook, As cabeças trocadas, O eleito e Confissões do Impostor Felix Krull, Sua Alteza Real – pela profundidade e diversidade dos temas, mostram a extraordinária erudição de Thomas Mann. Foi divertido ler Confissões do impostor Felix Krull, história descontraída, que infelizmente ele não chegou a concluir. 

Devo citar, mesmo que rapidamente,  autores que nos ajudam a ver o mundo como ele realmente é: Nelson Rodrigues (O óbvio Ululante, Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo) - a lucidez personificada, que em suas crônicas retratava personagens sem máscaras; o psiquiatra e ensaísta  inglês Anthony Daniels, sob o pseudônimo Theodore Dalrymple (Podres de mimados, Qualquer coisa serve, O prazer de pensar) que faz a sua crítica coerente e sutil da grande mídia, sociedade e governantes; o hoje decano economista Thomas Sowell, que em Os Intelectuais e a Sociedade examina a influência em geral equivocada de indivíduos tidos como ‘geradores de ideias’ ou ‘formadores de opinião’ sobre o público e através deste,  indiretamente,  sobre os que estão no poder. De outra forma e em contextos diferentes, alinha-se a eles Olavo de Carvalho (O imbecil coletivo, O Jardim das Aflições). Todos eles põem a nu, de forma ora mais ora menos contundente, a imensa estupidez humana. E finalmente, de caráter jocoso, Febeapá - O Festival de Besteira que Assola o País, de Sergio Porto, vulgo ’Stanislaw Ponte Preta’. Tendo suas histórias originalmente publicadas entre 1966 e 1968, faleceu precocemente. Se estivesse vivo nos tempos atuais, teria hoje um material imensurável para escrever.  Não daria conta.

Na sequência, depois do singular O que há de errado com o mundo, e Tremendas Trivialidades, gostaria de conhecer outros de GK Chesterton. Mais recentemente Rei Lear - escrito por Shakespeare como peça de teatro (desgraça no mais alto grau), O Príncipe (Nicolau Maquiavel), Pigmaleão (George Bernard Shaw), Pensar é transgredir e Perdas e Danos (Lya Luft), The Daring Young Man and the the Flying Trapeze and other stories (literatura americana escrita pelo armênio americano William Saroyan - edição de 1934 em Inglês, que baixei da internet), Farenheit 451, de Ray Bradbury (ficção publicada em de 1953, mas tristemente atual, que em 1966 François Truffaut transformou em um bom filme, estrelado por Julie Christie e Oskar Wener) e coletâneas de contos de Machado de Assis. 

E afinal, em analogia à suposta frase de Mané Garrincha na Copa de 1958, fui “conversar com os russos”. Inicialmente Anton Tchekhov, depois Dostoiévski, Liev Tolstói, Nikolai Gogol (Almas mortas e O Capote e Outras Histórias, e teria escrito bem mais se a morte prematura não o levasse) e Ivan Turguêniev (Pais e Filhos). 

Crime e Castigo foi o primeiro de Dostoiévski, depois Os Irmãos Karamázov, Noites Brancas, O eterno marido e O adolescente. Situações não resolvidas, expectativa e tensão, conflitos de consciência e sofrimento - que compõem a aura de suas histórias - às vezes parecem intermináveis, o que causa impaciência para chegar ao desfecho. À exceção do último mencionado, que arduamente consegui terminar, todos me agradaram, em principalmente Crime e Castigo, um drama que mantem o leitor em expectativa tensa o tempo inteiro. 

Fala-se bastante sobre Liev Tolstói. No posto de simples leitor, considero Guerra e Paz, Ana Kariênina, e A morte de Ivan Ilich indispensáveis, para quem quer começar a conhecer a literatura clássica. Caraterizada por realismo, a descrição dos dramas e tragédias da vida humana desenvolve-se de modo claro, prescindindo-se de erudição para interpretá-las. Há uma frase de impressionante lucidez em Ana Kariênina: "Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz".

Atualmente 

Reler Charles Dickens foi como rever um velho amigo de infância com quem tínhamos empatia e nunca mais vimos. Mesmo tratando-se de temas e histórias diferentes de Conto de Natal, eu notava traços de familiaridade e humor – há muito encobertos pelo tempo - à medida que mergulhava nos textos de Aventuras do senhor Pickwick - que é hilário e às vezes comovente. Grandes Esperanças, além destes atributos é às vezes trágico e nos faz viver, na pele do protagonista, em meio às contradições, qualidades e defeitos – suas grandes expectativas. É uma daquelas leituras que não queremos que acabe e quando isso acontece, a atmosfera e as impressões suscitadas em nossa mente persistem a ressoar por um bom tempo, como se a história fosse real. A partir dela fizeram três filmes, sendo o primeiro – Great expectations, dirigido em 1946 por David Lean, o melhor.      

O número de livros que listei é moderado, a considerar o tempo em que estou na estrada. Não seria preciso e eu nem gostaria que fosse maior. Em A vida Intelectual, A.D. Sertillanges - que proscreve a compulsão pela leitura quando o objetivo é o aprendizado para o trabalho - aconselha a ler pouco e saber escolher os livros: “Não acreditar nas propagandas interesseiras nem nos títulos aliciantes (...) Só ler em primeira mão, lá onde brilham as ideias mestras. Essas são pouco numerosas. Os livros repetem-se, diluem-se, ou então se contradizem, o que é outra maneira de se repetirem. Se observarmos com cuidado, os achados de pensamento são raros; o fundamento antigo, o fundamento permanente é o melhor; é nele que temos que nos apoiar...Só é novo aquilo que foi esquecido, no entender de uma comerciante de modas... penso que o significado desta última frase se aplicaria bastante ao que temos visto na literatura científica atual. 

Arthur Schopenhauer, em A arte de escrever, sustentava ser, quando possível, melhor ler os verdadeiros autores, os fundadores e descobridores das coisas, ou pelo menos os grandes e reconhecidos mestres da área. E que "é melhor comprar livros de segunda mão do que ler conteúdos de segunda mão".

Acabei de ler Oliver Twist (Charles Dickens) e A máscara de Dimitrios (de Eric Ambler, que teria sido o grande precursor da literatura de espionagem) e tenho embalados, à espera de serem abertos: David Copperfield (Charles Dickens) e O idiota (Dostoiévski), além Auto de fé (Elias Canetti), que ainda não recebi. 

Paro por aqui, pois tenho minha atenção dirigida a Um conto de duas cidades (Dickens) e  Verdades e Mentiras (Mario Vargas Lhosa) que, revirando a estante, descobri, em estado impecável (pela nota de compra, adquirido em 2006 na extinta Livraria Cultura do Conjunto Nacional). 

O percurso é interminável, mas é bom que seja assim. 

Setembro/Outubro de 2025


*Das condensações de livros de Seleções do Reader’s Digest, além dos mencionados, lembro abaixo os que mais gostei: 

Horizontes sem fim (Dick Grace). 

Pioneiro e ás da aviação que atuou como dublê de acidentes aéreos no cinema e combateu na segunda grande guerra. Perícia e sorte fizeram com que ele sobrevivesse para contar suas aventuras.  

Vai começar a função (Dan Mannix). 

A vida atípica dos artistas das feiras itinerantes de espetáculos - um mundo que não existe mais - narrada por um jornalista que queria ser e acabou sendo um deles.   

Deixei de ser freira (Monica Baldwn). 

A escritora entrou em um convento em 1914, permanecendo em estrita clausura até 1941, quando emergiu para um mundo estranho e mais complicado 

Ressureição de Lázaro (Betty Martin). 

Relato envolvente de uma jovem de 19 anos, que descobre estar com hanseníase e é internada em um hospital específico para o tratamento da doença. 

A trágica farsa (Budd Schulberg). 

Drama sobre a realidade do mundo do boxe profissional, estrelado no cinema por Humphrey Bogart e Rod Steiger. Não é preciso dizer mais.

O pai da noiva (Edward Streeten). 

Venturas e desventuras de um homem maduro cuja filha querida resolve se casar. Bestseller, gerou três versões para cinema: a melhor com Spencer Tracy (1950); a segunda com Steve Martin e Diane Keaton (1991), não tão boa. A mais recente foi considerada fraca. 

Um tostão que caiu do céu (Max Winkler). 

Jovem e humilde lenhador da região dos Cárpatos – Romênia, emigra com a família para os EUA, onde graças a seu trabalho e perseverança viria a fundar e dirigir uma grande editora do ramo musical. 

Pusemos a família em polvorosa (Hildegard Dolson). 

História bem-humorada da jovem de uma cidade pacata que decide se mudar para Nova York para tentar a vida como escritora. 

A caça ao Bismark (Com. Russell Grenfeld). 

Baseada em arquivos capturados e nos depoimentos dos sobreviventes do encouraçado alemão afundado em 1941.

Demônios de bombachas (Ross Carter). 

A realidade nua dos combates de infantaria vivida por um sargento paraquedista norte-americano e seus companheiros de batalhão durante a campanha da Sicilia, na segunda guerra mundial.  

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