Das imagens felizes
- “Papai, vamos ver a lua? ”
São cinco horas da manhã. O pequeno
me convida para ver a lua. Vamos até o quintal. Ele vai na frente; cabeça
erguida, olha a lua no céu que daqui a pouco irá clarear.
- É minguada! - exclama. Acho
graça; eu, preocupado em dar-lhe o café da manhã e sair de casa correndo para
não enfrentar o trânsito e ele a olhar a lua...
Wim Wenders disse que o excesso de
imagens acaba com a emoção que elas poderiam passar. Ele, que já filmou cenas
tão belas em preto e branco, se referia àquelas que a mídia e as redes sociais
despejam continuamente e que não temos mais paciência de ver.
O dia a dia também mostra cenas às
quais nos habituamos e que de tanto se repetirem deixam de ser percebidas. No
entanto, com o olhar atento e o coração preparado é possível resgatar algumas.
São as que emocionam, nos dão o sentido de estar vivos e até uma ligeira felicidade.
E o que é a felicidade?
É um princípio antigo que por mais
estável que seja a nossa situação na vida, nunca ficaremos seguros sobre um
bem-estar definitivo ou teremos certeza de alguma coisa. Longe de ser explicada
em termos materiais, a felicidade depende de sensações. Vemo-la, por exemplo,
no rosto de uma criança a chupar seu picolé. Naqueles minutos um picolé passa a
ser a coisa mais importante do mundo. Ser interrompida em sua felicidade será
para ela uma tragédia. Da mesma forma entendemos a alegria de um menino de rua
a se refrescar no chafariz da praça; ali, esquecido por instantes da sua
terrível realidade, ele é tão ou mais feliz que qualquer outra criança a quem
não falte nada.
Uma imagem é tão rica quanto as
ideias e emoções que inspira, condição que por sua vez depende também do que
vai no espírito de quem a descreve. É sobre estas impressões o que narrarei a
seguir.
Havia um sujeito a quem a vida
ensinara a não mostrar emoções. Sublimava-as ou ocultava-as sob uma máscara
impessoal.
Passava os dias em um cenário onde
os protagonistas executavam sempre o mesmo enredo, em uma cadência prosaica de
cenas e sons.
Pois foi nessa atmosfera que Einzelgänger
(seu nome) viu surgir
uma imagem, de início tênue, que devagar foi se tornando mais nítida. A ideia
que lhe despertava era a de uma figura feminina atraente. Não apenas isso, de
seu rosto fluía uma expressão generosa.
Sua beleza era talhada a partir da
afabilidade. Tinha um riso sincero e o dom da ponderação, prenúncio de empatia
com quem quer que conversasse. As pessoas ao redor, antes ensimesmadas, à sua
chegada tornavam-se alegres, tagarelas e com algum senso de humor. Tudo isso deu algum colorido às suas manhãs de trabalho.
As cenas que ela evocava, diga-se, ao longo do tempo passaram-lhe a fluir naturalmente, de modo
independente de sua vontade. Às vezes, mesmo estando longe, acontecia de ser
transportado de volta para a visão daquele semblante gentil... o que lhe
ensejava sentir de seu perfume e sua presença física.
Nada parecia haver nela de
aborrecido, que não tivesse instigado nele a vontade de lhe dar atenção e ficar
mais próximo. No entanto, o mais próximo possível era sempre um cumprimento
comedido, ainda que amistoso. Pois, antevendo que suas imagens não resistiriam
ao embate com os fatos, Einzelgänger decidira não se manifestar.
Mas ele não era de perder o ânimo.
Porque desde menino aprendera que não se vive sem poesia. E afinal de contas,
não é de imagens que se faz a realidade?
* Asas do Desejo -Wim Wenders