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A vantagem de se fazer de besta


    "A vantagem de se fazer de besta"

A aula inaugural para os alunos do primeiro ano terminara. Alguns perceberam a encenação; outros, mais crédulos pareciam ainda ter dúvidas de que se tratava de mais um trote... Não sei o que pensavam meus colegas naquele instante, mas a mim importavam  a  perspectiva do novo e a preocupação de como me ambientar da melhor forma às mudanças que estariam por acontecer. Era com esse espírito que meus olhos percorriam a classe, quando em meio aquele bando de cabeças raspadas, divisei uma figura masculina que destoava nitidamente das demais. À parte de ainda ter os cabelos longos, chamava a atenção por seu olhar mortiço e pela fisionomia de quem não queria nada, como se tivesse acabado de despertar de um longo período de sono. De onde teria surgido aquele cara? Não demorou muito e veteranos munidos de tesoura caíram em cima dele, revelando ser a natureza de sua condição igual à nossa, ou seja, a de um reles calouro. Por conta daquela expressão facial tão sugestiva, foi batizado com o apelido de “Maconha”.

        Ele possuía - como aos poucos fui percebendo - uma propriedade primitiva, inerente a algumas espécies de plantas e animais, chamada mimetismo. Conseguir integrar-se aos ambientes mais diversos, e ter a presença quase que desapercebida era o seu jeito de ser, inato e espontâneo pois, se alguém lhe pedisse para disfarçar alguma coisa, estragaria tudo. Nesse caso, costumava levantar as sobrancelhas e esboçar um sorriso, numa expressão inconfundível de cumplicidade que denunciava o que num primeiro momento passaria despercebido e que só um olhar mais cuidadoso permitiria observar.

De outro modo eu não poderia explicar o fato dele ter comido e bebido em casa durante meses, sem gastar um tostão. Decorridos quase dois anos, todos, salvo poucas exceções, moravam com os colegas com quem se identificavam. Uma dessas exceções era o Maconha. Apesar de ainda habitar a pensão do velho Caldas, adquirira o hábito de almoçar e jantar conosco quase que diariamente, pois pertencendo à mesma turma, nossos horários coincidiam. Acho que foi lá pelo mês de Agosto, ao observar a mistura regulada que Toninha trazia à mesa, que me veio o pensamento: se ele comia, bebia, cagava, enfim estava sempre  aqui, porque não entrava  na república? A rigor nada mudaria, com a vantagem que teríamos mais um para ajudar nas despesas. Conversando com os colegas, constatei que todos nós tínhamos a mesma idéia e logo a proposta da sua inclusão foi aceita por unanimidade. E eis que pela lei física da inércia ele se tornava finalmente um integrante oficial daquela casa. 

        Adaptar-se à nossa rotina não se constituiu em nenhum problema para o Mac. Para ilustrar o que eu digo, falarei um pouco sobre o caso das roupas. Naquela época tínhamos uma cômoda que, por falta de espaço nos quartos, deixávamos na sala de estar. Imensa, dava companhia a um sofá de napa quase branca e de estilo indefinido, que fora comprado de segunda mão. Eram as únicas peças que guarneciam aquele aposento. Em uma das gavetas dessa cômoda ficavam guardadas as roupas de baixo, todas devidamente marcadas com iniciais dos nomes de cada um. Apesar do caráter comunitário do móvel, cada um de nós tratava de pegar sua própria roupa, respeitando as dos colegas. O Mac também, na medida do possível, pois quando não encontrava cueca limpa, por exemplo, pegava a dos outros, o que acabou se tornando um hábito. Em uma visita que fiz à casa de seus pais, sem querer pude verificar que esse hábito havia chegado a extremos. Com toda a sua família ali reunida, ao baixar os olhos por um momento, notei no pé de um de seus irmãos uma meia azul muito conhecida minha e que há tempos dava por perdida. O detalhe da inscrição das iniciais HPL confirmou minhas suspeitas. Não lamentei a perda da  meia em si, mas a partir daquele episódio fiquei mais esperto com as minhas roupas.

        Difícil apontar uma peça de vestuário que o identificasse, que a gente pudesse dizer: “essa aqui é do Maconha”. Bem havia aquela toalha de banho, cuja cor original ninguém sabia mais, dados o tempo e as condições de uso. Ou talvez a sandália de couro que adquirira no sertão de Pernambuco durante sua participação no projeto Rondon.

         Até hoje tenho vergonha de relatar a cena que presenciei ao passar certa tarde pelos corredores do pronto socorro do hospital. Lá estava o Maconha, sextanista de medicina, trajando calça Lee e uma camiseta que não era sua; no pé escorado na parede, a tal sandália de couro. Com que calma ele acendia um cigarro - provavelmente serrado do acompanhante do paciente de quem ele começava a tomar a história. “E aí, tio, o que é que houve?” ouvi-o perguntar ao velhinho deitado na maca.

        Estas são só algumas passagens que revelam o jeito de ser Mac durante aquele tempo de escola. Houve muitas outras que não me lembro.  O fato é que passados seis anos dissolveu-se a república original, os interesses se diferenciaram  e cada um seguiu o seu rumo. Quase não nos víamos mais.  Mas certo dia, num nesses contatos esporádicos, ele me ligou.

    -        Ô Heitor, tudo bem?

    -        Tudo bem, Mac, e a vida?

    -        Vai indo. E aí?

    -        Aqui tudo bem. Que é que você conta de novo?

- Tudo na mesma. Como é que estão as coisas?

        Quinze minutos em geral era o tempo que eu conseguia sustentar aqueles diálogos telefônicos com o Mac. Depois disso, não encontrando mais assunto, eu costumava dizer qualquer coisa como: “Passa aqui qualquer hora pra tomar uma cerveja”. Ele era assim: quando o papo já estava se arrastando, adquiria entusiasmo e loquacidade não habituais. E desta vez, como sempre acontecia, ao receber o convite, animou-se:

    ”Tá legal, mas posso levar uma amiga?”

    “Claro, traga quem você quiser.”

    Na noite combinada, ele chegou com sua amiga. Morena clara, cabelos curtos e sobrancelhas hirsutas, o traje formal e os óculos reforçavam-lhe um ar natural de eficiência.

    Cumprimentamo-nos alegremente e pedi que se sentassem. Mas notei que eles ficaram distantes um do outro e ele a tratava com cerimônia. “Bom - pensei - vai ver que é só amizade mesmo”. Naquela altura ele era o único solteiro entre nós, não por descuido de seus amigos, pois até que nos esforçávamos para satisfazer a vontade de seu pai, o seu Benjamin:

    “Veja o seu amigo aí, nessa vida boêmia. O que ele precisa é arranjar uma moça boa  pra casar, uma  moça prendada,  você não acha?”

    Pensando naquelas palavras, compenetrei-me do meu papel social, e após as  amabilidades  de praxe, resolvi investigar:

“O que é que você faz?”

“Sou secretária bilíngüe.”

“Aah!” E trabalha com o que?”

“Trabalho com importação”

Com a conversa naquele andamento, ponderei que logo teríamos intimidade suficiente para discorrer sobre outros assuntos, como por exemplo a previsão dos fenômenos atmosféricos. Mas dali a pouco, dirigindo-se ao Mac de modo inesperado, ela desencantou:

“Quer que eu encha o seu copo, chuchu?”

Assim, fiquei conhecendo a Rose, que me pareceu uma pessoa muito decidida e organizada. Reuniria ela os atributos necessários para satisfazer os anseios do seu Benjamin?

Sem arriscar observações mais profundas sobre o seu perfil psicológico, eu diria que o comportamento do Maconha não era um simples hábito, mas um mecanismo de defesa, daqueles que se põem em prática em situações de perigo, como aconteceu meses depois em Caraguatatuba. Ele e Rose, nossos hóspedes naquela tarde, saíram para um passeio dizendo que voltariam  logo.

Já escurecia, quando vi os dois passarem pelo portão não propriamente abraçados, mas o Mac sendo conduzido pela Rose. Ela ostentava um sorriso do tipo “eu levo você pra casa”; ele, moderadamente bêbado, exibia aquela expressão característica que fazia quando surpreendido.

    “Fala chuchu” ela cutucava. Mas ele só fazia subir as sobrancelhas e sorrir.

    “Bem, se você não quiser falar, falo eu.”

    “Deixe que eu falo” É que nós conversamos e... nós conversamos e... bem, é que decidimos nos casar e queríamos que vocês fossem os padrinhos”.  

    Não sei se, por ter percebido as implicações que aquelas palavras teriam sobre o seu destino ou tomado pelos efeitos do álcool, logo após nossas manifestações de louvor ele foi se recolher. E eu me perguntava: "Será que amanhã ele se lembrará de alguma coisa?".    

    Mas afinal, marcou-se a data do casamento, não sem antes Rose obrigar-lhe a passar adiante o seu automóvel, um fusquinha que ele vendeu para o desmanche. Tudo acertado, iriam morar no apartamento dela.

    No dia da cerimônia religiosa, não prestei quase atenção aos convidados da noiva, só me lembro que eram tantos que lotaram a igreja. Guardo porém a imagem da expressão solene representada no rosto do pai do noivo como testemunho da importância do evento para a sua família. À passagem do casal, a clássica música Pompa e Circunstância - própria para tais circunstâncias - deu uma certa grandiosidade ao momento e também ao Maconha, cuja aparência estava quase irreconhecível. Aquele não era mais o nosso Mac... 

    “Você viu?” ouviam-se os comentários “eles se casaram e foi a Rose quem providenciou tudo: o apartamento, o carro, a festa. Até a música que tocaram na igreja foi idéia dela.

    É, mas no meio disso tudo, qual foi o dote do Maconha?”

    “Bem, parece que contribuiu com o pinto...!”