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Legere

Legere 

Já disseram que à medida que se envelhece, o passado torna-se mais interessante.

Este não é um inventário de livros, mas um breve recordatório, em que procurei me lembrar dos que encontrei pelo caminho e as circunstâncias em que me foram apresentados. Restringi os critérios de seleção à qualidade literária, ao valor sentimental e ao entusiasmo com que foram lidos – notadamente os infantis. Uns tantos que considero de boa qualidade, ficarão de fora, porque não couberam nesta régua. Haverá aqueles de que gostei, mas que fugiram da lembrança. E eventualmente aparecerão exceções que não preenchem os dois primeiros parâmetros. Então, na prática, a escolha foi arbitrária, baseada em afinidades e na memória.  

Trilha inicial 

Em princípios de 1959, aos seis anos de idade, fui alfabetizado, o que me lançou no mundo da leitura. Das pequenas histórias de livros que ganhava de meus familiares do Sul, me agradou particularmente a de um camponês, que por ouvir relatos de que se poderia ganhar dinheiro e ser próspero, decidira tentar a vida na cidade grande. Decorridas semanas em que se mudara, na noite de um dia cansativo e infrutífero, como os demais desde que lá chegara, ele estava só em seu quarto da pensão.  Desiludido por ter sido passado para trás por indivíduos em quem acreditara, ele matutava com seus botões sobre o que fazer, quando ouviu chamarem-no pelo nome. O som parecia vir do armário de madeira à sua frente, o que o deixou intrigado. E entrou em sobressalto quando, apresentando-se, a voz lhe revelou ser uma velha árvore que ele conhecera no sítio onde morava. Agora, na forma de um móvel, conversava com ele, tentando consolá-lo. Sábia, velha árvore alertou o rapaz sobre as maldades do mundo e deu-lhe conselhos prudentes. Um pouco aliviado de sua tristeza, depois de refletir, ele decidiu retomar à vida frugal e saudável que deixara em seu rincão no campo, para continuar ao lado dos seus. Aquele conto simplório chamou minha atenção por tratar dos perigos do mundo, do valor das coisas simples e honestas e sobretudo da amizade.  

Em 1960, alguns livros me ajudaram a subsistir face às três mudanças de escola e de domicílio pelas quais passara nos últimos seis meses. Um dos primeiros foi Peter Pan, que meu pai me comprou em uma livraria-papelaria quando subíamos a rua Voluntários da Pátria. Era uma edição da Melhoramentos baseada na adaptação simplificada da história do escocês JM Barrie feita por Walt Disney em seu longa-metragem, mas o bastante para me cativar. Depois, Os mais belos contos de fada tchecos (Editora Vecchi), de capa dura, que ele trouxe em uma noite ao chegar em casa, como presente dado por não me lembro quem – possivelmente de sua madrinha de formatura na Escola Técnica de Aviação. Este livro, com texto mais elaborado, me animou por conter histórias de cavaleiros da Idade Média. 

Meu universo literário era então povoado por criaturas fantásticas e personagens heroicas. Era um começo. A seguir vieram Histórias das mil e uma noites, O patinho feio, Soldadinho de chumbo, Robinson Crusoé (Daniel Defoe) a coletânea Histórias da Carochinha e Viagens de Gulliver (Jonathan Swift) entre os que eu me lembro, e livros eu adquiria com o dinheirinho que vinha do Sul pelo correio, junto com as ansiadas cartas de minha avó e minha tia Esther. 

Naquele mesmo ano fomos presenteados com duas obras clássicas por um dos irmãos do meu pai, o tio Sergio, que era vendedor de livros. Minha mãe recebeu uma Bíblia ilustrada, em dois volumes - o antigo e o novo testamento. De encadernação luxuosa e capa vermelha, a edição primava por ilustrações a cores de matizes sinistras. Impressionaram-me a figura de Lúcifer, a visão uma cisterna, as imagens do julgamento de Cristo, e sua tentação no alto de uma montanha com o diabo a oferecer-lhe “todos os reinos do mundo”, a figura de Barrabás, e o desespero de Judas a caminho da oliveira onde se enforcaria. No velho testamento, o jovem Davi, com sua funda, a enfrentar Golias. Mas prefiro falar da coleção de três livros que ganhei, em capa dura de cor azul, chamada Paraíso Infantil - A palavra através da imagem e da cor, que seria meu Vade mecum por um tempo. Na simplicidade dos meus oito anos, em 1961 emprestei-o à dona Maria do Carmo Rocha, minha inesquecível professora do terceiro ano primário, para que ela atestasse pessoalmente o quão instrutivo e interessante era o conteúdo de suas páginas. Desconfio que ela não tenha chegado a ler. 

Certos livros aos quais tive acesso entre 1960 e 1961 me agradaram, mas reservo um lugar especial ao infantil de Érico Veríssimo (Gente e Bichos) e a Os doze trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato, um mergulho inicial na mitologia grega, cujo primeiro tomo li em seis dias, durante as férias de julho de 1961. 

Fui feliz em contar com uma boa biblioteca municipal, que ficava bem em frente grupo escolar onde eu estudava. Em meio de uma ampla área ajardinada, a sede da Biblioteca Narbal Fontes - imóvel tombado - é uma casa de formas arquitetônicas normandas. Era para lá que eu e meu irão íamos após concluir as lições de casa. Mais do que biblioteca, simbolizava uma figura materna dadivosa a alimentar seus filhos com suas estantes repletas de livros infanto-juvenis que eu levava emprestados todas as semanas. Há menos de 1 ano fiquei por mais de 30’ ao telefone a conversar com a bibliotecária para buscar informações sobre a escola em que estudei ao chegar São Paulo. Atenciosa, ela não demonstrou ter pressa e deve ter entendeu o meu intento puramente nostálgico. 

Um dia retornarei lá para matar as saudades.   

Itinerários

Embalado, lia espontaneamente tudo que encontrava, incluindo as Seleções do Readers Digest, Marcelino Pão e Vinho, Pinocchio (o original de Carlo Collodi) e mais tarde o Tesouro da Juventude. Este último, uma maravilhosa enciclopédia ilustrada em dezoito volumes, foi presenteado por minha tia Esther em dezembro de 1962; lembro-me da euforia com que ia retirando um a um, os volumes da caixa entregue pela VARIG.

Através da leitura, eu entrava em um mundo desconhecido e às vezes mais instigante do que o real. Nenhuma tela, algoritmo ou realidade virtual substitui as impressões e a representação das imagens produzidas pelas conexões mentais que ativamos ao ler uma história. É lamentável que as novas gerações não saibam disso, e provavelmente não venham a saber. 

A partir dos dez anos de idade eu seguia conhecendo a essencial coleção de livros infantis de Monteiro Lobato, alguns emprestados de amigos e colegas, como Geografia de Dona Benta, Aritmética da Emília, Peter Pan, Caçadas de Pedrinho, edições simplificadas das obras de Charles Dickens (Conto e Natal), Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, Os Irmãos Corsos), e As Viagens de Marco Polo. 

Mas de regra, eu ficava à mercê do que meu pai trazia para casa - exemplares de Seleções do Readers Digest e respectivas condensações de livros (através dos quais travei contato com bons escritores, entre os quais Daphne Du Maurier na edição em Inglês de The Scapegoat, A.S. Exupéry em Céus e Abismos, John Fante em Estuante de vida e Patrick Quentin com A viúva negra. Além destas há outras de que gostei e que são mencionadas ao final do texto*. 

Havia também os da Biblioteca do Exército, que meu pai assinava; à medida que iam tomando lugar na estante da sala, eu procurava ler, se me interessassem - e o periódico mensal Revista Aeronáutica. Não poderia omitir Grandes benfeitores da humanidade, que ganhei de meu pai no dia da cerimônia de formatura do curso primário, em que me chamaram a atenção, sobretudo Benjamin Franklin, e da dupla de cirurgiões dentistas - Thomas Green Morton e o (infeliz) Horace Wells que, a partir do gás hilariante, desenvolveram a anestesia. E guardado na parte interna da estante da sala, História da Civilização Ocidental, clássico de Edward McNall Burns publicado em dois volumes pela Editora Globo (Porto Alegre), de capa amarela e preta e em edição de 1947. Obviamente, não li na íntegra, mas gostava de consultá-lo com frequência. 

Durante os últimos anos da década de 1960, como parte do ensino de Português, li José de Alencar (O Gaúcho, Senhora e A Pata da Gazela), Machado de Assis (Quincas Borba, Helena) e voltaria a Érico Veríssimo com Clarissa e Música ao Longe, entre outros. 

Dos livros da Biblioteca do Exército, as biografias de Heinz Guderian, de Otto Skorzeny, Rommel e a invasão da Normandia, A Revanche dos dois vencidos (de Max Clos e Yves Cuau, sobre o reerguimento econômico da Alemanha e do Japão no pós-guerra), Arquipélago Gulag, relato desolador escrito por Aleksandr Soljenítsin sobre o período em que ele e outros dissidentes permaneceram em campos de trabalho forçado na antiga União Soviética. 

Guardo até hoje História Secreta da Última Guerra, das Seleções do Readers Digest - crônicas sobre episódios vividos por seus protagonistas ou narrados por bons jornalistas correspondentes de guerra. Todas eram muito bem escritas, tendo me chamado a atenção Lindberg Narra seu Primeiro Voo de Guerra, em que Charles Lindberg, em prosa ligeiramente romântica, filosofa sobre o porquê de os homens se baterem em guerras; Uma noite inesquecível - relato de uma noite de bombardeio em Londres em 1940; o dramático O fim do Bismark e o animador Como Heidelberg foi salva, sobre um patrimônio mundial que eu viria a visitar muitas décadas depois. 

Nesta mesma linha, havia os livros da Editora Flamboyant sobre a guerra aérea, que devorávamos eu e meu irmão até princípios dos anos 70 – Piloto de Stuka, Fogo no Céu, Príncipes do Céu, A Grande Caça e o Grande Circo, em que Pierre Clostermann narra histórias vividas por ases de ambos os lados e por ele mesmo. E Missão 60, em que Fernando Pereyron Mocellin conta a sua saga para se tornar piloto de caça e integrar o grupo da FAB que lutou nos céus da Itália durante a II Guerra Mundial. 

No início do curso colegial, tendo me filiado ao Clube do Livro, chegaram pelo correio O Espião que saiu do frio (John le Carré) e outros, como Da Terra à Lua (Jules Verne). Seguiu-se um período refratário, em que meu interesse era mais voltado para o futebol, mas não deixava de reler alguns dos que tinha em casa. Foi o caso de Urupês, de Monteiro Lobato, que minha irmã lera como tarefa escolar. O escritor, deixando de lado a influência da literatura francesa, comum na época, conta histórias da gente do interior - ora engraçadas ora trágicas - em linguagem genuinamente nacional. 

Referências

Durante o curso superior, por sugestão de um colega - que gostava de assumir ares de erudito ao fazer digressões sobre assuntos que não dominávamos – li Somerset Maughan (O fio da navalha), George Orwell (1984) e Johannes Mario Simmel (Nem só de caviar vive o homem). Garimpando na então moderna e ampla Biblioteca Municipal de Campinas encontrei o Admirável mundo novo (Aldous Huxley) e Histórias que mamãe nunca me contou (Alfred Hitchcock). 

Mais tarde, em 1978, a curta convivência com uma moça formada em Letras (Português e Alemão) ensejou que eu ganhasse de Natal Batismo de Fogo (Mario Vargas Lhosa) e, por sua recomendação, voltasse a me encontrar com Érico Veríssimo no irreal Incidente em Antares. Dele, só recentemente li Olhai os Lírios do Campo. 

Há outros que me foram indicados ou ganhei de pessoas que gostavam de ler: O conto da ilha desconhecida (José Saramago), História da Música (Otto Maria Carpeaux), Poetas Russos (vários), Contos Dublinenses (James Joyce) e A peste, de Albert Camus, de quem leria também os igualmente lúgubres O estrangeiro e A queda, e por último, Diário de Viagem.

Quando compartimos interesses com alguém de quem gostamos, estabelece-se espontaneamente um elo mental que pode favorecer o afetivo e o resultado será profícuo para ambos. De certas pessoas recebi referências sobre livros e até motivação para ler. Duas mulheres com as quais tive ligação deram, cada uma à sua maneira, contribuições decisivas para ambas as coisas. 

A primeira me levou a conhecer Jorge Amado (de quem ela lera tudo) - Farda, fardão, camisola de dormir (mostra as tramas políticas para se conseguir uma vaga na Academia Brasileira de Letras), depois Navegação de Cabotagem (nesse ele estava mais engraçado) e Zelia Gattai, sua esposa. Às vezes privávamos da leitura juntos, em revezamento, caso de Não verás país nenhum (Ignacio de Loyola Brandão) comprado em uma manhã de quinta-feira santa na antiga Livraria Cultura do Conjunto Nacional, e que no mesmo dia nos fez companhia durante um acampamento (Hans Camping) em Penedo, na Serra da Mantiqueira. Do autor viríamos a ler outros, com ênfase para O beijo não vem da boca, Zero, Cabeças de segunda-feira e O verde violentou o muro. A série de nossa comunhão literária é grande, mas notavelmente George Orwell, de quem gostei mais na fase prévia a 1984 e Revolução dos Bichos, talvez por ele acenar com pelo menos um fio de esperança na humanidade. Poucos livros fizeram com que eu me identificasse mais com um escritor do que Lutando na Espanha e Na penúria em Londres e Paris. Neste último, parece que vivemos as suas desventuras junto aos camaradas pobres, vagabundos e tipos excêntricos que integravam a população flutuante das pensões sujas e albergues que lhe serviram de moradia nos tempos em que se viu sem dinheiro. Pode ter sido naquela época que adquiriu o bacilo de Koch que iria levá-lo aos 46 anos, em 1950. Na sequência, leríamos Dias na Birmânia, A Clergyman’s daughter, A caminho de Wigan, Keep the Aspidistra Flying e Um pouco de ar, por favor. 

Não haver um aparelho de TV em casa foi um fator adjuvante, mas a força primordial para ler vinha de nossa vontade inata.  O catálogo prosseguia: A Era da Incerteza (John Kenneth Galbraith), A República de Weimar (Lionel Richard), Paris nos tempos do Rei Sol (Jacques Wilhelm), A Guerra do Fim do Mundo (Mario Vargas Lhosa), Walden - A vida nos bosques (Henry Thoreau) e alguns sombrios contos de Kafka (Um artista da fome, A construção, A Metamorfose) são os que me lembro agora, além de O Beijo da Mulher Aranha (Manuel Puig), Mad Maria, A Condolência e A ordem do dia do amazonense Marcio de Souza; Chega de saudade, O Livro de Insultos de Mencken  e A estrela solitária (Ruy Castro); Cem Dias entre Céu e Mar (Amyr Klink); Ensaios Insólitos (Darcy Ribeiro) e das histórias engraçadas do Luís Fernando Verissimo. E claro, chegaram às nossas mãos aqueles de cunho histórico e marxista, como os dos festejados Paul Singer e Hobsbawn, que estavam em voga, e cujas ideias nos eram simpáticas por sermos jovens e crédulos - e, portanto, pouco informados. Nestes não irei me deter. Mas a título de citação, guardo, pelo valor documental, uma edição em Português do propagandístico e caricato História da URSS – breve relato da construção da sociedade socialista, que descobrimos por acaso quando visitávamos uma livrara em Budapeste, em 1984. 

Lembro-me de De Caligari a Hitler - História psicológica do cinema alemão, de Siegfried Krakauer, e de Lanterna Mágica, autobiografia de Ingmar Bergman. Nos últimos tempos juntos, Imagens (Ingmar Bergman), que ela me presenteou, Everest: Viagem à Montanha Abençoada (Thomas Brandolin) e aquela considerada como a melhor biografia de Freud: Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo, de Peter Gay, que li panoramicamente e estimulado mais pela perspectiva histórica do que por suas ideias.  

Graças àquela mulher de riso espontâneo e sorriso envergonhado, que primava pelo senso prático, entendi a filosofia de Exupéry em O Pequeno Príncipe, que não é um livro apenas para crianças. Os primeiros anos em sua companhia foram auspiciosos, tamanhas eram as certezas que tínhamos e tantas as coisas novas a descobrir.

Da segunda, embora de início lhe tivesse notado encantos, não a vislumbrara como uma jovem da qual um dia eu pudesse me aproximar. Isso mudaria quando ela passou a me fazer companhia com suas conversas sobre livros, nas altas horas de plantões que vivemos juntos. Então eu passaria a conhecer mais profundamente Saint-Exupéry, através de Terra dos Homens (na tradução de Rubem Braga), Correio Sul e Voo Noturno, me depararia com o estranho mundo DH Lawrence (O amante de Lady Chatterley), leria contos William Faulkner e O corvo (Edgar Allan Poe) - segundo ela dizia, o poema mais traduzido do mundo. Na tradução ímpar de Fernando Pessoa, transcrevo abaixo suas duas primeiras estrofes:

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, 

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, 

E já quase adormecia, ouvi o que parecia 

O som de algúem que batia levemente a meus umbrais. 

"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. 

É só isto, e nada mais." 

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, 

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. 

Como eu quria a madrugada, toda a noite aos livros dada 

Pra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais 

- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, 

Mas sem nome aqui jamais!

Conversávamos sobre tudo - coisas importantes ou não, e as ideias fluíam como as ondas de seus cabelos - longos e de uma cor viva e marcante. Ela estava sempre em dúvida e costumava dizer que não confiava em ninguém, nem nela própria. Mas onde encontrar alguém para discutir Saint-Exupéry (que não só O Pequeno Príncipe), personagens da revolução francesa (entre eles, Marat, cuja biografia me presenteou), e que tivesse lido o Diário de Ana Maria?  

O material de que era feita - uma mistura incomum de pragmatismo e leveza – dava-lhe um encanto psicológico que me atraía. Lembro-me do fim de tarde em que ao sair do trabalho a avistei no ponto de ônibus, antes de um temporal que se anunciava. Movido por reflexo, parei e ofereci-lhe carona. O vento que fazia voar as folhas das árvores e a visão quase onírica de sua figura - a pele muito clara, os cabelos ondulados e revoltos - que contrastava com tudo...ela aceitara e fomos conversando, como se nos conhecêssemos de longo tempo.

Um dia me dei conta de que ela iria partir. Tomado por uma sensação amarga diante de sua ausência iminente e antevendo que o mundo ficaria desinteressante, escrevi e enviei a ela algumas linhas...

Dias depois, no final da tarde, eu me preparava para sair do trabalho, quando fui informado de que havia alguém querendo me ver.

Era ela. Alegre e expansiva, trazia consigo um diário de sua época de escola e um livro sem capa, de páginas amareladas pelo tempo - aparentava ser um romance passado na corte do rei Luís XIV. Apontando algumas frases - em seu olhar transparecia uma discreta cumplicidade - parou em uma que dizia: ‘o amor pode tudo’. Eu, que nunca recebera uma resposta tão suave, e agradavelmente surpreso com sua visita imprevista, levei-a até o ponto de ônibus e sugeri que continuássemos a conversa em outro lugar naquela noite, com o que ela concordou... 

O bar estava iluminado e quase vazio ao chegarmos. Acomodamo-nos, ela conduzida por palavras e eu, por pensamentos. Pareceu-me ouvir ao longe - não me lembro se naquele instante ou depois - um bandoneon (teria sido?) agradável e discreto. Porque meus sentidos estavam atentos a outro foco: os contornos de seu rosto, os ombros e o som de sua voz.  

Tomado pela lucidez que nos assiste nos momentos cruciais, percebi claramente que não havia mais o que falar ou pensar. Em certo momento, encontrando uma brecha em meio à sua loquacidade, pedi-lhe alguma coisa...Calados, juntamos tacitamente as mãos e olhamo-nos nos olhos. Assim ficamos por instantes até que eu a puxei para mim - nossos lábios se encontraram e então senti, visceralmente, o mesmo gosto e leveza que sentia quando conversávamos. E à medida que sobrevinham, as sensações me transportaram para aquilo que eu viria a ler, anos mais tarde, no epílogo de um conto de Thomas Mann: “Pois uma felicidade, um pequeno calafrio e atordoamento de felicidade toca o coração quando aqueles dois mundos entre os quais oscila nosso anseio se tocam por um breve, enganoso instante”.

Nas ocasiões em que dava o ar da graça - estava sempre a transitar e nunca permanecia em definitivo - ela certa vez me dissera estar desconfiada de viver a encarnação de uma personagem histórica - Desiré, que até ali eu desconhecia. Naturalmente achei estranho, e decidido a investigar, adquiri o livro do mesmo nome, da autora Annemarie Selinko, que narra a história de Bernardine Eugénie Desiré Claire, a primeira noiva de Napoleão Bonaparte e que mais tarde seria, como esposa do Marechal Bernadotte, rainha da Suécia.    

Não irei me alongar mais sobre o insólito relacionamento - creio que as breves passagens aqui resumidas são suficientes. Digo apenas ter sido ela um dos fatores que animaram a vontade de escrever que desenvolvi na época. 

Movimento inercial

No compasso daquela fase apareceram Contos breves – O mago apodrecido de Guillaume Apollinaire, Contos Fantásticos – O Horta & outras histórias de Guy de Maupassant, Memórias de Lorenzo da Ponte - o principal libretista de grandes óperas de W.A. Mozart, Eu (Augusto dos Anjos), Clepsidra (Camilo Pessanha), A paixão transformada (Moacyr Scliar) e A Divina Comédia (Dante Alighieri) traduzida em prosa por Hernâni Donato, leitura que interrompi quando Dante chega ao Paraíso, por tê-lo achado sem emoção

Mais adiante Flores do Mal (Baudelaire), Por um punhado de Gitanes (biografia de Serge Gainsbourg), A estrada (Jack London), Servidão humana e O destino de um homem (S. Maugham) além das biografias de François Truffaut, de WA Mozart, de Exupéry, e de Beethoven. Nesta última, o autor (Lewis Lockwood), docente aposentado de música em uma universidade americana famosa, se excede nos termos técnicos e arrisca-se a evocar imagens do que teria ido na cabeça do Beethoven para criar essa ou aquela composição. Se excede ainda mais ao fazer comentários - a meu ver enviesados - sobre o panorama político da época. Como não tenho erudição para entender as peculiaridades teóricas de peças musicais e acho que o autor não deve ter conhecimento apropriado para dissertar sobre a realidade europeia de então, não fui além da metade do livro. 

Devemos louvar os escritores que mais contribuíram para nossa jornada literária.  Na ordem em que me foi dado ler suas obras, figuram no panteão, em ordem cronológica: Érico Verissimo, Machado de Assis, George Orwell, Antoine de Saint-Exupéry, Hermann Hesse, Thomas Mann, Dostoiévski, Liev Tolstói, Nikolai Gogol e Charles Dickens. Da literatura infantil, Monteiro Lobato, Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm. Dos pensadores, Arthur Schopenhauer (O mundo como vontade e representação e A arte de escrever entre muitos); dos cronistas, Rubem Braga e dos poetas, Mario Quintana, Fernando Pessoa (Quando fui outro), Manuel Bandeira (Meus poemas preferidos), Carlos Drummond de Andrade (Memória; A bunda, que engraçada) e Emily Dickinson (A Água se aprende pela sede...). 

A propósito de poesia, por intermédio de uma psicóloga com quem tive uma interação fortuita durante a estação de entressafra - e que admirava Lou Salomé - conheci Rainer Maria Rilke (Frutos e Apontamentos, Histórias do Bom Deus, Cartas a um jovem poeta). Este último eu presentearia a uma moça, que até hoje não deve ter entendido o porquê – talvez porque ela fosse bem jovem e eu nem tanto... 

Em um plano não tão alto, merecem ser reverenciados: John Fante (A Caminho de Los Angeles; Pergunte ao pó; Espere a Primavera, Bandini; O Vinho da Juventude; A grande fome; Sonhos de Bunker Hill; 1933 foi um ano ruim) que, segundo outro grande, Charles Bukowski, escrevia com as entranhas e o coração, e os que mencionarei a seguir:  

William Somerset Maugham, hábil criador de tramas, era médico, mas não exerceu a profissão; tendo atuado pouco tempo como agente do Serviço Secreto Inglês, viveu sua longa vida para escrever. 

Oscar Wilde, gênio da prosa e da ironia e crítico sutil e sagaz das farsas sociais em seus contos, poemas e histórias de fadas em que acontecia de tudo, menos um final feliz.  

De Ernst Hemingway, aclamado pela crítica por seu estilo simples e direto, gostei de Por quem os sinos dobram (na tradução de Monteiro Lobato, superior às demais), O sol também se levanta, Paris é uma Festa e dos contos As Neves do Kilimanjaro e Lá no Michigan, mas nem tanto de Adeus às armas. Em Paris é uma Festa, publicado postumamente, o autor evoca a Paris dos anos 20 – para onde iam os intelectuais e artistas da época – em uma aparente atmosfera de otimismo, leveza e até humor, o que destoa das outras suas histórias. 

Erich Maria Remarque, vim a descobrir tardiamente, embora tivesse adquirido o célebre Nada de Novo no Front vinte anos antes, na mesma época que O lobo da estepe e também por 3 reais. Porque me agradei tanto do livro, li quase todos os demais de sua autoria – em geral de segunda mão ou no formato de e-book, por não haver mais edições impressas. Entre eles, destaco Arco do Triunfo, Uma noite em Lisboa e Três camaradas, que deram origem - a exemplo do primeiro e de outros - a filmes em que atuaram grandes nomes de Hollywood. O melhor deles The night in Lisbon (Die Nacht von Lissabon) que em minha opinião transmite a atmosfera de temor e de esperança angustiante  de suas  histórias, foi dirigido com rara sensibilidade pelo tcheco Zbynek Brynych em 1971, tendo a interpretação marcante de grandes atores alemães (https://youtu.be/R50rPYCJMuc?feature=shared). Nessa e em quase todas as suas histórias há medo, sofrimento e morte, mas também amor, lealdade e esperança, vividas nas sagas das personagens que, como ele mesmo, escaparam ou tentaram escapar do regime que dominou a Alemanha de 1933 a 1945. 

Stephan Zweig, cuja vida foi abalada por duas guerras mundiais, escreveu Três novelas femininas e as biografias de Tolstói e de Freud (com quem teve alguma convivência). Retratou a nostálgica Viena de outros tempos em Autobiografia - O mundo de ontem. Tendo perdido o seu mundo, veio se exilar em Petrópolis, no Brasil, onde teria, junto com sua companheira, um triste desenlace.

Há os eu comecei e não terminei, como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (pulei o volume 4 e não fui além do 5) e O homem duplicado (José Saramago). Tenho uma edição em Português de Portugal (Editora Europa América) de 20.00 Léguas Submarinas, de Júlio Verne, que comecei e não fui adiante por já conhecer a história (as edições para crianças eram muito divulgadas  em 1962) ... e é óbvio haver um número infindável dos que gostaria de ler e ainda não li, ou li apenas trechos - caso de Fausto, de W. Goethe, e de autores que provavelmente não chegarei a ler, como Miguel de Cervantes, Gustave Flaubert, Mark Twain, e Stendhal (O Vermelho e o Negro, de quem a segunda jovem mencionada dizia gostar). 

E de novo, os livros que estavam bem à vista nos mostruários das livrarias acabaram me alcançando, como O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (do neurologista Oliver Sacks), O Físico (Noah Gordon) - história interessante sobre os primórdios da Medicina, mas de narrativa linear e insípida; O dia em que Nietzche Chorou, e Sobre a China (Henry Kissinger) além de outros de que não me lembro.  

Os que que foram e não voltaram

No afã de compartilhar leituras que eu havia gostado com pessoas de quem gostava, perdi de vista, definitivamente, alguns bons livros. Teria sido por esquecimento delas? Não. Penso que tinham por hábito adotar o meigo princípio segundo o qual “o que meu é seu”, só que invertido – “o que é seu, passa a ser meu...”. Entre tais livros estão Nêmesis Médica – A expropriação da Saúde (de Ivan Illich, que comprei em 1980 em uma livraria na rua 24 de Maio), A velhinha de Taubaté, Cabeças de segunda-feira, Keep the Aspidistra Flying, emprestados a amigos que à época professavam o socialismo oposto ao que pregou Jesus, ou seja, ao invés de pegar suas coisas para dividir com próximo, pegavam as coisas do próximo para dividir com os seus. Correio Sul e Voo Noturno acabaram ficando para aquela que gostava tanto do Exupéry, além outros que não me ocorrem agora. 

Mais tarde

Comecei a ler a obra de Herman Hesse aos 46 anos, com O Lobo da Estepe, publicação original da Editora Record, capa dura, pela qual paguei 3 reais em 1999, que estava em uma pilha de livros em promoção, à entrada da livraria Nobel do cruzamento das avenidas Paulista e Brigadeiro Luiz Antônio. Agradou-me por sua incomum personagem, e por tratar da psicologia do homem maduro. Tanto que comecei a ler o livro em São Paulo e o levei comigo para uma viagem solitária à Irlanda. É uma história fantástica no sentido exato do termo. A ela se seguiriam outras – A arte dos Ociosos (que fortuitamente achei em um sebo de Porto Alegre, em 2004), Demian, O Último Verão de Klingsor, e Sidharta, que comecei e não terminei por achar monótono. 

Na sequência viria Thomas Mann, conhecido pela elegância e desenvoltura do estilo.  É o autor de A montanha mágica e Doutor Fausto. Este último eu havia ganho de uma residente em uma festa de amigo secreto quando tinha por volta de 30 anos; comecei a ler, mas não fui adiante, por falta de tempo e porque não estava preparado para entender as interioridades da história. Voltaria a ele uns 25 anos mais tarde. É talvez o único livro que me tenha dado a sensação de medo, na cena em que que o protagonista, o compositor Adrian Leverkühn é abordado pelo Demônio. Na trama, desenvolvida a partir de uma fábula do folclore alemão – ao que parece publicada pela primeira vez em 1587 - Mann faz um paralelo com a derrocada da Alemanha durante período de governo nazista. Em seus livros, ele consegue ser dramático, irônico e engraçado, mas sempre com classe e sem resvalar no lugar-comum. Certamente contribuíram para valorizar sua obra entre nós as traduções de Herbert Karo. O trecho que transcrevo abaixo, dá ideia da sutileza com que descreve, na pessoa do professor Zeitblom, narrador da história, a jovem com a qual seu amigo Adrian, tencionava se casar: 

“Estou em condições de esboçar um retrato de Marie Godeau, já que, pouco depois, por boas razões, meus olhos se fixaram nela demoradamente para um exame bastante intenso. Se jamais o epíteto "simpática" se adequou a uma pessoa, certamente cabe ele para designar essa moça, que, da cabeça aos pés, com cada palavra, cada sorriso, cada expressão, correspondia ao significado sereno, moderado, estético e moral da palavra. Menciono, antes de mais nada, que Marie tinha os mais lindos olhos negros do mundo, olhos pretos como azeviche, como pez, como amoras silvestres maduras, olhos não muito grandes, mas cuja mirada saía franca, clara, pura de profundezas obscuras, debaixo das sobrancelhas, cujo desenho fino, regular, tão pouco se devia à arte cosmética quanto o suave e inato vermelho dos lábios. Nessa jovem não havia nada que fosse artificial, nada de arrebiques que devessem sublinhar, intensificar, colorir os traços do rosto. A graça natural, sóbria, com que a basta cabeleira castanha estava puxada para trás, pesando sobre a nuca, desnudando a testa e as delicadas têmporas, e deixando livres as orelhas — essa graça impregnava as mãos também, mãos belas e sensíveis, nada pequenas, porém delgadas e de ossamenta fina. Os punhos de uma blusa de seda branca ajustavam-se nos pulsos. A gola lisa envolvia da mesma forma o pescoço, que, esbelto e redondo, qual coluna magistralmente esculpida, saía dela, coroado pelo graciosamente afilado oval do rosto ebúrneo com o narizinho fino, bem plasmado. A vitalidade com que Marie abria as narinas chamava-me a atenção. Seu sorriso não muito frequente, suas risadas ainda mais raras, que sempre exigiam algum esforço quase comovente da quase diáfana região temporal, punham a descoberto o esmalte dos dentes regulares, muito juntos”.

No início, a leitura de Doutor Fausto pode soar morosa para quem não é versado em teologia e teoria musical, temas sobre os quais os protagonistas se embrenham em densos diálogos, mas depois passa a fluir bem. Aos que nunca leram o autor, sugiro começar por seus contos, como eu fiz com Os Famintos e Outras Histórias da Editora Nova Fronteira, que foi a plataforma de lançamento para que eu chegasse a ler Doutor Fausto.

A montanha mágica, retrato da alta sociedade europeia à beira da primeira guerra mundial reúne questões culturais, sociais, médicas, sobre arte, amor, entendimentos e desentendimentos que movem o quotidiano dos habitantes daquele mundo particular - em que o tempo e a morte também são protagonistas - narradas às vezes com ironia através da lente de perfeição estética do autor.  É o livro que mais me fascinou até hoje.

Outras obras maiores que li a seguir – Os Brudenbrook, As cabeças trocadas, O eleito e Confissões do Impostor Felix Krull, Sua Alteza Real – pela profundidade e diversidade dos temas, mostram a extraordinária erudição de Thomas Mann. Foi divertido ler Confissões do impostor Felix Krull, história descontraída, que infelizmente ele não chegou a concluir. 

Devo citar, mesmo que rapidamente,  autores que nos ajudam a ver o mundo como ele realmente é: Nelson Rodrigues (O óbvio Ululante, Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo) - a lucidez personificada, que em suas crônicas retratava personagens sem máscaras; o psiquiatra e ensaísta  inglês Anthony Daniels, sob o pseudônimo Theodore Dalrymple (Podres de mimados, Qualquer coisa serve, O prazer de pensar) que faz a sua crítica coerente e sutil da grande mídia, sociedade e governantes; o hoje decano economista Thomas Sowell, que em Os Intelectuais e a Sociedade examina a influência em geral equivocada de indivíduos tidos como ‘geradores de ideias’ ou ‘formadores de opinião’ sobre o público e através deste,  indiretamente,  sobre os que estão no poder. De outra forma e em contextos diferentes, alinha-se a eles Olavo de Carvalho (O imbecil coletivo, O Jardim das Aflições). Todos eles põem a nu, de forma ora mais ora menos contundente, a imensa estupidez humana. E finalmente, de caráter jocoso, Febeapá - O Festival de Besteira que Assola o País, de Sergio Porto, vulgo ’Stanislaw Ponte Preta’. Tendo suas histórias originalmente publicadas entre 1966 e 1968, faleceu precocemente. Se estivesse vivo nos tempos atuais, teria hoje um material imensurável para escrever.  Não daria conta.

Na sequência, depois do singular O que há de errado com o mundo, e Tremendas Trivialidades, gostaria de conhecer outros de GK Chesterton. Mais recentemente Rei Lear - escrito por Shakespeare como peça de teatro (desgraça no mais alto grau), O Príncipe (Nicolau Maquiavel), Pigmaleão (George Bernard Shaw), Pensar é transgredir e Perdas e Danos (Lya Luft), The Daring Young Man and the the Flying Trapeze and other stories (literatura americana escrita pelo armênio americano William Saroyan - edição de 1934 em Inglês, que baixei da internet), Farenheit 451, de Ray Bradbury (ficção publicada em de 1953, mas tristemente atual, que em 1966 François Truffaut transformou em um bom filme, estrelado por Julie Christie e Oskar Wener) e coletâneas de contos de Machado de Assis. 

E afinal, em analogia à suposta frase de Mané Garrincha na Copa de 1958, fui “conversar com os russos”. Inicialmente Anton Tchekhov, depois Dostoiévski, Liev Tolstói, Nikolai Gogol (Almas mortas e O Capote e Outras Histórias, e teria escrito bem mais se a morte prematura não o levasse) e Ivan Turguêniev (Pais e Filhos). 

Crime e Castigo foi o primeiro de Dostoiévski, depois Os Irmãos Karamázov, Noites Brancas, O eterno marido e O adolescente. Situações não resolvidas, expectativa e tensão, conflitos de consciência e sofrimento - que compõem a aura de suas histórias - às vezes parecem intermináveis, o que causa impaciência para chegar ao desfecho. À exceção do último mencionado, que arduamente consegui terminar, todos me agradaram, em principalmente Crime e Castigo, um drama que mantem o leitor em expectativa tensa o tempo inteiro. 

Fala-se bastante sobre Liev Tolstói. No posto de simples leitor, considero Guerra e Paz, Ana Kariênina, e A morte de Ivan Ilich indispensáveis, para quem quer começar a conhecer a literatura clássica. Caraterizada por realismo, a descrição dos dramas e tragédias da vida humana desenvolve-se de modo claro, prescindindo-se de erudição para interpretá-las. Há uma frase de impressionante lucidez em Ana Kariênina: "Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz".

Atualmente 

Reler Charles Dickens foi como rever um velho amigo de infância com quem tínhamos empatia e nunca mais vimos. Mesmo tratando-se de temas e histórias diferentes de Conto de Natal, eu notava traços de familiaridade e humor – há muito encobertos pelo tempo - à medida que mergulhava nos textos de Aventuras do senhor Pickwick - que é hilário e às vezes comovente. Grandes Esperanças, além destes atributos é às vezes trágico e nos faz viver, na pele do protagonista, em meio às contradições, qualidades e defeitos – suas grandes expectativas. É uma daquelas leituras que não queremos que acabe e quando isso acontece, a atmosfera e as impressões suscitadas em nossa mente persistem a ressoar por um bom tempo, como se a história fosse real. A partir dela fizeram três filmes, sendo o primeiro – Great expectations, dirigido em 1946 por David Lean, o melhor.      

O número de livros que listei é moderado, a considerar o tempo em que estou na estrada. Não seria preciso e eu nem gostaria que fosse maior. Em A vida Intelectual, A.D. Sertillanges - que proscreve a compulsão pela leitura quando o objetivo é o aprendizado para o trabalho - aconselha a ler pouco e saber escolher os livros: “Não acreditar nas propagandas interesseiras nem nos títulos aliciantes (...) Só ler em primeira mão, lá onde brilham as ideias mestras. Essas são pouco numerosas. Os livros repetem-se, diluem-se, ou então se contradizem, o que é outra maneira de se repetirem. Se observarmos com cuidado, os achados de pensamento são raros; o fundamento antigo, o fundamento permanente é o melhor; é nele que temos que nos apoiar...Só é novo aquilo que foi esquecido, no entender de uma comerciante de modas... penso que o significado desta última frase se aplicaria bastante ao que temos visto na literatura científica atual. 

Arthur Schopenhauer, em A arte de escrever, sustentava ser, quando possível, melhor ler os verdadeiros autores, os fundadores e descobridores das coisas, ou pelo menos os grandes e reconhecidos mestres da área. E que "é melhor comprar livros de segunda mão do que ler conteúdos de segunda mão".

Acabei de ler Oliver Twist (Charles Dickens) e A máscara de Dimitrios (de Eric Ambler, que teria sido o grande precursor da literatura de espionagem) e tenho embalados, à espera de serem abertos: David Copperfield (Charles Dickens) e O idiota (Dostoiévski), além Auto de fé (Elias Canetti), que ainda não recebi. 

Paro por aqui, pois tenho minha atenção dirigida a Um conto de duas cidades (Dickens) e  Verdades e Mentiras (Mario Vargas Lhosa) que, revirando a estante, descobri, em estado impecável (pela nota de compra, adquirido em 2006 na extinta Livraria Cultura do Conjunto Nacional). 

O percurso é interminável, mas é bom que seja assim. 

Setembro/Outubro de 2025


*Das condensações de livros de Seleções do Reader’s Digest, além dos mencionados, lembro abaixo os que mais gostei: 

Horizontes sem fim (Dick Grace). 

Pioneiro e ás da aviação que atuou como dublê de acidentes aéreos no cinema e combateu na segunda grande guerra. Perícia e sorte fizeram com que ele sobrevivesse para contar suas aventuras.  

Vai começar a função (Dan Mannix). 

A vida atípica dos artistas das feiras itinerantes de espetáculos - um mundo que não existe mais - narrada por um jornalista que queria ser e acabou sendo um deles.   

Deixei de ser freira (Monica Baldwn). 

A escritora entrou em um convento em 1914, permanecendo em estrita clausura até 1941, quando emergiu para um mundo estranho e mais complicado 

Ressureição de Lázaro (Betty Martin). 

Relato envolvente de uma jovem de 19 anos, que descobre estar com hanseníase e é internada em um hospital específico para o tratamento da doença. 

A trágica farsa (Budd Schulberg). 

Drama sobre a realidade do mundo do boxe profissional, estrelado no cinema por Humphrey Bogart e Rod Steiger. Não é preciso dizer mais.

O pai da noiva (Edward Streeten). 

Venturas e desventuras de um homem maduro cuja filha querida resolve se casar. Bestseller, gerou três versões para cinema: a melhor com Spencer Tracy (1950); a segunda com Steve Martin e Diane Keaton (1991), não tão boa. A mais recente foi considerada fraca. 

Um tostão que caiu do céu (Max Winkler). 

Jovem e humilde lenhador da região dos Cárpatos – Romênia, emigra com a família para os EUA, onde graças a seu trabalho e perseverança viria a fundar e dirigir uma grande editora do ramo musical. 

Pusemos a família em polvorosa (Hildegard Dolson). 

História bem-humorada da jovem de uma cidade pacata que decide se mudar para Nova York para tentar a vida como escritora. 

A caça ao Bismark (Com. Russell Grenfeld). 

Baseada em arquivos capturados e nos depoimentos dos sobreviventes do encouraçado alemão afundado em 1941.

Demônios de bombachas (Ross Carter). 

A realidade nua dos combates de infantaria vivida por um sargento paraquedista norte-americano e seus companheiros de batalhão durante a campanha da Sicilia, na segunda guerra mundial.  

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