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Um breve, enganoso instante

                            Um breve, enganoso instante

            Embora lhe notasse a graça e a delicadeza, não a vislumbrara como uma mulher por quem um dia pudesse se interessar. Pois era o que vinha acontecendo desde que ela passara a lhe fazer companhia com suas conversas e livros.

            Conversavam sobre tudo - coisas importantes ou não, e as ideias fluíam bem. Estava sempre em dúvida e costumava dizer que não confiava em ninguém, nem nela própria. Mas onde encontrar alguém para discutir Saint-Exupéry (que não o Pequeno Príncipe), D.H. Lawrence, personagens da revolução francesa, e que tivesse lido o ‘Diário de Ana Maria’?

            Com o tempo, constatou que o material de que era feita - uma mistura incomum de pragmatismo e leveza - tinha um encanto psicológico que o atraía.

            Lembrou-se do fim de tarde em que ao sair do trabalho a avistou no ponto de ônibus, antes de um temporal que se anunciava. Movido por reflexo, parou e ofereceu-lhe carona. O vento que fazia voar as folhas das árvores e a visão quase onírica de sua figura - a pele muito branca, os cabelos anelados, revoltos, de uma cor incomum, que contrastava com tudo...ela aceitara e foram conversando, como se conhecessem de longo tempo.

            Um dia ele sentiu se aproximar o momento em que a mulher que lhe cativara iria embora. Anteviu então que não apenas aquele lugar, mas o mundo inteiro ficaria sem graça. Tomado por uma sensação amarga, mas ainda não de desalento, ele entendeu o que deveria dizer-lhe...

            O bar estava iluminado e quase vazio quando chegaram. Acomodaram-se, ela conduzida por palavras, ele por pensamentos. Em certo momento, percebendo uma brecha em meio à sua loquacidade, ele pediu-lhe alguma coisa...
            Calados, juntaram tacitamente as mãos e olharam-se nos olhos. Assim ficaram até que ele a puxou para si e seus lábios se encontraram – e então sentiu, visceralmente, o mesmo gosto e leveza que sentia quando conversavam.
            E à medida que lhe sobrevinham as sensações, ele pensava no epílogo de um conto de Tomas Mann: 
“Pois uma felicidade, um pequeno calafrio e atordoamento de felicidade toca o coração quando aqueles dois mundos entre os quais oscila nosso anseio se tocam por um breve, enganoso instante.”