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Caminhante II

      Acordo animado, e ao me aproximar da sala de refeições pressinto o peso da cozinha irlandesa: bacon, linguiça, ovo frito... para não passar fome, comerei um pouco, mas amanhã pedirei ao Johnny para preparar outra coisa.
       A casa parece um antiquário! O fonógrafo “do tempo do onça”e as fotos de família que ornam a parede, a música de ópera...
       Hoje irei até o centro – já tenho organizada mentalmente uma lista de objetivos a cumprir nos próximos dois dias. O primeiro é visitar a 'Casa de James Joyce', que já foi considerado maldito por seus compatriotas, mas hoje simboliza a nota de dez libras irlandesas. Depois de assistir a um vídeo, vou ao quintal, onde há um bar cujas paredes mostram pinturas alusivas ao “Ulysses”. Perto dali o Writers Museum, que merece a visita.
      Pouco depois de sair do museu, dou com um ônibus amarelo estacionado na O´Connell street, as portas abertas – é um circular. Pensando não haver meio melhor para conhecer a cidade, pego um lugar. É facultado sair e entrar quando se quiser: são treze pontos diferentes e passa um ônibus a cada 15 minutos. O guia motorista é engraçado, não apenas relata os acontecimentos ocorridos nos lugares por onde passamos, mas também interpreta as personagens das histórias que conta – um ator. Se eu conseguisse entender o que ele fala, seria perfeito – é o sotaque irlandês!
       Primeira parada é em Merrion Square Park onde, meio escondida, uma estátua em cores do Oscar Wilde faz uma pose debochada; à frente, duas esculturas femininas de acrílico transparente, em cuja base posso identificar conhecidas frases do escritor:
       “Todos estamos na sarjeta, mas alguns de nós ainda podem fitar as estrelas.”
       “Quem fala a verdade, cedo ou tarde será descoberto.”
       O guia Frommers informa que Wilde quando criança morou em criança em um prédio ao lado, que hoje integra o American College da Irish American University. A manhã azul e este parque fazem com que eu me sinta bem. Em frente ao parque fica a National Gallery, com quadros de artistas irlandeses; alguns deles tem influência do Impressionismo francês. Não os acho grande coisa. Na volta, entro no ônibus errado, mas percebo a tempo; o motorista para logo adiante e ainda consigo fazer sinal para o certo, que vem logo atrás. Geralmente, quando visito tais lugares sou tomado por um certo encantamento e acabo não prestando atenção a detalhes menores como este.
       Na sequência, a Igreja de São Patrício, medieval; só eu desço. Meia hora depois, outro ônibus me deixa na Guinness. Aqui descem todos. Entre informações de como se faz cerveja, fico sabendo que o Arthur  Guinness arrendou uma cervejaria decadente em 31 de Dezembro de 1759 por apenas U$ 40 (ou 40 libras) ao ano, pelo período de nove mil anos. Depois dos esclarecimentos históricos vamos ao que interessa: densa e de espuma cremosa, apesar de ser amarga, a cerveja não deixa esse gosto na boca.
       Na volta ainda fazemos três paradas em locais de interesse: Museu Nacional, Destilaria de uísque e Music Hall of Fame, todas elas inúteis, pois estão prestes a fechar.
       Já são seis da tarde; de volta ao centro, vindo do interior de um pub, um apelo irrecusável me faz entrar. Aos poucos, identifico a harmonia dos sons: por vezes é cheia de energia e pressupõe gente e movimento; em outras, transmite suavidade e quietude, mas nos dois casos passa longe do convencional. Imagino que a música country e a new age tenham um pouco de suas origens na música celta.
       A manhã seguinte me conduz, bem cedo, ao Jardim Botânico. É o maior que já vi; por algum tempo percorro trilhas sozinho, pois a esta hora quase não há frequentadores. Na volta me aproximo de grandes estufas brancas que se elevam imponentes contra o fundo azul do dia... e as flores lá dentro, sendo desenhadas por adolescentes tão absortos em sua contemplação que parece que eles é que estão a posar. Do lado de fora, monitoras passeiam suas crianças por uma orgia de ideias coloridas.
       Vou-me embora a contragosto — ainda tenho que passar no Johnny antes do meio-dia para pegar a bagagem e seguir para o aeroporto, onde alugarei um carro para conhecer o interior.
       A caminho do ponto de ônibus, paro diante da entrada de algumas das casas e admiro as belas portas dublinenses; junto a algumas ainda se vê sobre o tapete da entrada, o pão e o leite. Esta cena me transporta a um Brasil de antes, saudoso e bom...
      Quando no balcão da autolocadora dou o número da minha reserva, uma surpresa - esperava um carro mais simples do que este que me reservaram.
       “It's all yours” — diz o funcionário cortês apontando-me a máquina prateada. Estudo o volante, os instrumentos e os comandos do lado direito e o aviso Drive on the left no adesivo bem grande sobre o painel. Ligo o motor — "Follow the speed limit!” me avisa ele — e ponho-me a caminho.
       Ligeiro estresse ao entrar na rodovia M-50. Segundo o Johnny, uma vez na roundabout deve-se seguir pela N-7 com destino a Limerick. Não há como errar. Num delírio momentâneo, imagino-me na situação de ficar preso na tal rotatória a dar voltas, eternamente. Mesmo com o sentido da visão momentaneamente hipertrofiado não deixo reparar no som do rádio, onde duas estações me cativam na hora: a Lírica e a Celta.
       Trânsito mais ou menos livre, minha velocidade não destoa da dos demais veículos. Começo a dissecar com os olhos as placas de sinalização que aparecem até que consigo sair da rotatória e entrar na N-7, ao que parece.
       A rodovia passa por dentro das pequenas cidades, retardando a viagem. Mas para que pressa? Posso ter pelo menos uma visão rápida e panorâmica de cada vilarejo. Em um supermercado à beira da estrada, adquiro os ingredientes para preparar — em uma área externa reservada para esta finalidade — a minha farofa.
       Mais duas horas de percurso, nas quais levo a muito a sério o aviso de dirigir à esquerda, e eis Limerick, no centro-sul do país. Não parece ter nada de excepcional, mas ao cruzar a ponte, construções medievais enormes conclamam a conhecê-las de perto. Três voltas consecutivas são suficientes para que eu desista de estacionar no centro. Saio do fluxo, viro à esquerda aleatoriamente e acabo em uma rua estreita e escondida onde desponta uma vaga. Estou bem perto das duas únicas coisas que merecem ser vistas nesta cidade: a catedral de Santa Maria e o Castelo do Rei João, irmão malvado do Ricardo Coração de Leão. Decepcionado, verifico que os dois já cerraram as portas por hoje; terei que voltar amanhã. A igreja, do século doze, impressiona pelo portal de madeira, imenso, que faz um arco em estilo românico. Quanta história deve haver lá dentro! Tento enxergar o interior pela fresta, mas só consigo imaginar... Junto a ela, o cemitério... logo vai escurecer e entendo que este não é um bom lugar para passar as próximas horas.
      Saindo da ruazinha, retomo o fluxo que, próximo ao estádio, desemboca num congestionamento; parece que todos estão indo para um tal jogo de rugby. Quando escapo finalmente, descubro uma avenida onde há vários B&B. “Que maravilha, será fácil encontrar um que me dê pousada por hoje!”
       Vã expectativa! Perco um bom tempo até constatar que todos eles estão lotados, o culpado por isso é o jogo entre Irlanda e Austrália pelo campeonato mundial de rugby. ”Não há vagas”, alguns já tem até uma placa na porta, avisando. Decido então continuar, sem uma ideia definida de onde ir, mas quem sabe na saída da cidade não serei mais feliz?
       Já são mais de dez horas da noite. Só, em plena autoestrada, há muito deixei para trás os limites suburbanos. As placas de luz fluorescente passam depressa e por mais que meus olhos se abram não diviso as três letrinhas salvadoras - B&B.
       Agora quase não há tráfego de veículos; passam alguns poucos que vão bem acima das 70 mph permitidas; um olhar rápido para o ponteiro do velocímetro e percebo que eu também excedi a velocidade limite.
       Transpostos os sinais de civilização, é só mato de ambos os lados. Escuridão quase absoluta,  contestada somente pelas luzes brancas e vermelhas do painel de instrumentos por trás do volante.
       Ter o caminho livre, esquecer de tudo o que ficou para trás. Daqui para a frente, interessar-me apenas pelo que vai acontecer, saber que estou à mercê do imponderável.
      Sigo, porém, seguro de que acharei algum lugar para passar a noite, nem que seja no banco desse carro ou quando alcançar a cidade mais próxima – a quantas milhas fica mesmo daqui...?
        Parece que vi alguma coisa do lado esquerdo. Sigo até o próximo balão, procurando pelo retorno. Realmente, é a indicação de um B&B situado a 4 km a partir de um caminho  de terra secundário. Esperançoso, sigo o atalho tocando em frente. Dizeres pintados à mão me guiam até um ponto onde diviso algumas luzes, situadas em um plano inferior ao que estou. Lá em baixo encontro uma casa grande o suficiente para me tranquilizar quanto à existência de vagas. Toco a campainha e aparece uma senhora com cara de titia. 
- “How can I help you?”
- “Do you have any room available for tonight?”
- I'm sorry, but we don't have any vacancies for tonight.
- "Really? What a hell is going on with this fucking place?" Foi o que eu tive vontade de dizer a ela, mas só consegui olhar para o chão. Não é possível que aqueles putos tenham vindo se hospedar aqui! Afinal, estamos a quase uma hora de carro da cidade. Acho que a minha expressão deve ter despertado nobres sentimentos na mulher, pois me pediu: 
- “Please hold on a moment. I'm going to call a friend who lives nearby; she might have a room available for you.”
- “Eis que ela volta com boas notícias e o marido, que se prontificou a me acompanhar no caminho até lá. 
-  “God bless you, madam!”