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Caminhante I

       Ela quis me sugerir o que levar na bagagem, mas eu já havia feito a mala. De qualquer modo, foi difícil não sentir sua presença física. Ao abraço seguiu-se o beijo e senti que poderíamos permanecer ali indefinidamente. Todavia, mesmo impulsos afetuosos de última hora e a insistência em me acompanhar até o aeroporto não conseguiram trazer de volta meu pensamento, que já ia longe.
       No 747 velho e lotado embarcamos, eu e minhas recordações — por enquanto, um cachorro bem-comportado. Não consigo dormir, os canais de música não funcionam direito e, mesmo que quisesse assistir ao filme não permitiriam os pentelhos que estão a desfilar e posar à minha frente. Detalhes sem importância, pois é a perspectiva de introspecção e de conhecer lugares novos que me anima.
       De manhãzinha pousamos em Milão, de onde farei conexão para Londres. Ao olhar o painel constato que o voo está atrasado por problemas de tráfego. “Mais espera" — resmungo — e me acomodo em um banco vago para apreciar melhor o movimento do saguão. São Francisco é o destino da moça alta de olhos azuis e calça jeans sentada à minha frente. Enquanto ela se concentra na leitura de uma revista eu, sem paciência para ler, dou um passeio imaginário por sua topografia. Detendo-me por instantes em um ponto específico, sou tomado por uma significativa impressão que cresce à medida que me lembro da imagem de um quadro de Gustave Coubert que vira no museu D’Orsay, chamado “A origem da vida",
        Finalmente anunciam o embarque.
      Sentada no assento ao lado, uma figura dos Emirados Árabes. Traja túnica branca, tem tosse produtiva e não deve tomar banho há muito tempo. Não dou mesmo sorte nesses voos solitários. Da outra vez foi aquele pinguço e agora esse cara “esquife”...
       Da cabine de comando informam que devido ao tráfego aéreo será feita uma rota mais longa; pelas contas chegaremos a Londres uma hora antes do embarque para Dublin. Procuro me despreocupar folheando a revista de bordo que não difere das demais publicações do gênero. Ao fazê-lo, constato ser este problema comum também ao almoço – a mesma comida servida por outras tantas companhias aéreas. Só o árabe é agraciado com um prato especial, que não consigo identificar o que seja. Ao término da refeição, meu espaçoso companheiro de poltrona externa sua satisfação emitindo uma eloquente salva de arrotos intercalados por um “sorry.” Pelo menos o pouso ocorre no horário previsto.
      Mal consigo me livrar da fila de desembarque, inicio uma busca pelo aeroporto de Heathrow atrás da minha conexão. Dizem-me que o voo até Dublin será por outra companhia aérea. Entro em outra fila para obter informações; junto ao balcão à minha frente, um grupo de indianas gordas tenta se fazer entender diante da funcionária da empresa. Repetidas vezes consulto o relógio; os minutos escorrem... quando chega a minha vez, a moça cordialmente diz que não dará tempo de pegar o voo para Dublin. Como? Mas felizmente ela havia se esquecido do atraso de 1h no fuso horário. Como pedido de desculpas recebo um belo sorriso.
       Quando vou passar pela Imigração, soa o alarme de incêndio, obrigando todos a abandonar a área imediatamente. Era alarme falso ou então, um simples treinamento. Na volta, um funcionário, cortês, ao olhar meu passaporte, pede para esperar um pouco; conversa com seu colega que diz não saber de nada. Decidem então consultar o computador; devem estar dando por falta do visto, ou quem sabe, meu nome estaria na lista de foragidos? Demora um pouco até eles entenderem que não é preciso visto para brasileiro entrar no Reino Unido. Vencida mais esta barreira, retomo a corrida em direção à sala se embarque do meu voo, situada a apenas alguns quilômetros de distância (portões 82 a 90!).
      A confirmação do embarque e a ideia suave que me passam as funcionárias da British Midland atenuam um pouco a tensão acumulada pela correria. Finalmente tenho a sensação de que vou sair!
       O voo é tranquilo e ao nos aproximarmos do destino, a temperatura local é de doze graus centígrados.
        Desembarco — e não me lembro de haver usado a primeira pessoa do singular com tanta propriedade em uma viagem anterior.
      Trocar dinheiro e procurar alojamento são as primeiras providências a tomar. No guichê de informações uma jovem simpática e eficiente me diz que para conhecer a cidade não será preciso alugar um carro, é possível fazer tudo de ônibus. Reserva-me um quarto em casa particular, informa onde devo pegar o ônibus e onde saltar- “desça na Ionna road, próxima ao Queen´s Pub”.
       Junto ao ponto que me foi indicado, observo os ônibus; são de cores alegres e com dois andares. Finalmente chega o meu, o de número 41. Camisa azul impecável e gravata escura tornam ainda mais formal o ar do motorista, que responde positivamente à minha indagação sobre o tal Queen's Pub. Pergunto a uma senhora gorda se ela conhece a rua e ela diz que o seu conhecido deve saber. “Eu vou saltar lá” diz ele, solícito. Notando minha bagagem, ela aponta para um assento vazio e sugere que eu me acomode; eu, curioso, prefiro ficar em pé, pois assim tenho uma visão melhor dos arredores. Quando chegamos a uma avenida larga com construções de tijolos aparentes, o cidadão avisa para descermos e após indicar onde é a Ionna Road, despede-se afavelmente.
      Mais dez minutos de caminhada e estou apertando a campainha da casa (Hydra House) que me servirá de lar pelos próximos dois dias. Quando a porta se abre, surge um velho bem-disposto:
      “I am Johnny, my wife is out. Wellcome! How was your journey? I'll give you a map". Conversamos um pouco; digo-lhe onde pretendo ir e ele assinala o itinerário no mapa. O quarto que me cabe é no andar de cima; não é muito grande, mas a cama sim. Das cortinas ao papel de parede, tudo é antigo, claro e bem cuidado. Abrindo a janela observo as demais casas que, como esta, pertencem ao século dezoito ou dezenove. Daqui posso entender o porquê do verde (além de representar a cultura gaélica) entre as cores do país. Nessas ocasiões é comum que eu fique um pouco deslumbrado com as coisas que vejo, as quais depois caem na banalidade. Não será o caso do banheiro, cujas peças e luminárias antigas não se parecem com nada que eu tenha visto até então. Os azulejos formam figuras femininas clássicas em cenas de banho, passando ideia de graça e aconchego.
      Depois da faxina, empreendo marcha até o Temple Bar, zona boêmia tradicional da cidade. A perspectiva do novo afasta um pouco a sensação de estar sozinho. Dez quarteirões depois e alguns desentendimentos com o mapa me levam, já ao anoitecer, à ponte sobre o rio Liffey. Gente por todos os lados. Muitos jovens nesse país, ao contrário da maior parte da Europa.
      De posse do Frommer’s procuro fazer alguns reconhecimentos pelas ruas ao redor. Nessa maratona, acabo me esquecendo de coisas básicas até ser alertado por um aroma de peixe frito e batatas. Decido arriscar, porque vejo no Frommer’s ser esta a especialidade da casa Bishoff desde o começo do século XX. À moça que serve as porções pergunto se não estaria faltando algo à relação de bebidas - "beer only in pubs, sir”... O ambiente é de self service e a refeição, gordurosa, é bem vinda.
      No regresso à Hydra House, já na Ionna Road, avisto o Mapples Pub. Ao entrar, encontro uma atmosfera bem distante da agitação e barulho dos botecos comuns. Acomodar-me e sintonizar com a harmonia do lugar — que remonta aos ares dos anos 40 — faz diminuir gradualmente o estado hiperdinâmico em que estou. Saio de lá descansado e com a confortável intuição de que meu caminho por estas terras será promissor.  
      Como seria se ela estivesse junto? É o pensamento que me surge antes de deitar, quando olho de relance para a cama e os lençóis...

Outubro de 1999

 
After 10:30 by Steve Flaherty feat. Mary Custy





O acordeonista




           Voltáramos ao bistrô onde nos havíamos conhecido. Os garçons de sempre, poucas mesas disponíveis e muito barulho. Orientais (coreanos?) próximos de nós falavam alto, em Inglês. Na mesa à nossa direita um casal, que logo depois receberia a companhia de outro; possivelmente amigos, aparentavam ser cineastas. Na sala contígua, reservada para fumantes, um grupo grande e animado - e o cheiro de cigarro chegando até nós.
           Ninguém se deu conta quando o acordeonista postou-se junto ao balcão de entrada para tocar. Era o mesmo das vezes anteriores, com seu jeito discreto e o boné de um modelo antigo.
           Naquela noite, o ambiente reunia ingredientes para estragar qualquer intenção de lirismo. Ainda assim ela parecia feliz. Estendendo-me sua mão em um gesto romântico, ao me fazer ouvir os acordes de uma antiga canção francesa que o pobre músico teimava em tocar, mostrava emoção no olhar. E eu, imerso em minhas abstrações, nem mesmo reconheci de início aquela música - era uma das que eu gostava - se bem que ele não a interpretasse lá muito bem. O que não fazia diferença, pois quase ninguém ali lhe prestava atenção. Concentrando-me então na melodia deixei a sensibilidade vencer a razão, atitude que me tornou magnânimo com os sons que ouvia e ajudou a continuar por mais um tempo ali - um recanto que anos antes da ampliação de seu espaço físico fora convidativo e intimista.
           E então animei-me ao reconhecer que ela sabia ser carinhosa até mesmo nas ocasiões em que o meio ambiente não era favorável.
           Ao deixamos a casa, ela observou à gerente detrás do balcão que o burburinho não permitia que se escutasse o músico. A moça assentiu com a cabeça, mas ficou claro que isso não era motivo de preocupação para ela. Em um último olhar, notei que o nosso acordeonista, também resignado, não desistiria de tocar, pois folheava sua pasta de partituras, como que a escolher o próximo número.                                                                                  
Momentos antes desse gesto - disse-me ela enquanto ganhávamos a rua - ele sorrira para nós...  
    


            L'accordéon (Serge Gainsbourg) - Juliette Greco